Rubem Perlingeiro*
Uma das
repercussões do movimento antirracista que se seguiu ao assassinato de George
Floyd é o aprofundamento do debate sobre como e às margens de quem a História é
contada.
Estátuas de
escravocratas, generais confederados e colonizadores foram derrubadas por
manifestantes que as veem como símbolos de dominação, genocídio e violência,
reverberando uma antiga demanda para que as visões dominantes do passado sejam
revistas.
Até mesmo Robert
Baden-Powell, fundador do Movimento Escoteiro, tornou-se alvo desses protestos,
com manifestações para a retirada de sua estátua em Poole Quay, no sul da
Inglaterra, sob insinuações de que ele teria sido racista, e simpatizante do
fascismo e do nazismo.
Quanto a essas
insinuações, recomendo a leitura da matéria publicada no site da BBC (link
disponível em https://www.bbc.com/news/uk-england-dorset-53007902).
Tim Jeal, o
principal biógrafo de Baden-Powell, não ligado ao Movimento Escoteiro e,
portanto, desprovido de qualquer paixão pelo Escotismo que pudesse comprometer
a sua isenção em relação ao tema, esclarece que B-P condenava esses regimes
totalitários e que qualquer suspeita de admiração ao líder nazista não passa de
um equívoco de interpretação. Segundo Jeal, o elogio ao “Minha Luta” de Hitler
estava em um registro de seu diário pessoal e foi mal interpretado. E
acrescenta: “Baden-Powell condenou Hitler por ser um megalomaníaco e por montar
o que chamou de ‘grandes concursos para hipnotizar o seu povo’.”
Tim Jeal lembra,
ainda, que Baden-Powell foi colocado em uma lista de captura e execução do
regime nazista durante a Segunda Guerra.
Laszlo Nagy,
Secretário-Geral da Organização Mundial do Movimento Escoteiro de 1968 a 1988,
em seu livro “250 Milhões Escoteiros” (1ª edição, 1987, UEB/RS), deixa claro as
objeções que B-P fez ao fascismo:
“Os ‘Balilla’
tinham substituído os Escoteiros e o Chefe-Escoteiro do Mundo estava ansioso
por encontrar-se com o líder deles. A entrevista com Mussolini foi um encontro
de duas personalidades fortes que não trocaram socos em seus debates e que foi
amplamente reportado pela imprensa italiana, que chamou-o ‘evento solene’. Foi
mais que isso. Mussolini insinuou que Baden-Powell deveria estar muito feliz
porque o movimento italiano estava definitivamente moldado no dos Escoteiros,
embora – como insistiu – em uma versão ‘melhorada’.
Quando
Baden-Powell fez objeções, Mussolini perguntou-lhe que objeções ele poderia
ter. B-P respondeu que os ´Balilla’ eram uma organização oficial, ao invés de
uma organização ‘voluntária’; que ela visava nacionalismo partidário ao invés
de sentimentos bons, internacionais, mais amplos; que era puramente física, sem
qualquer equilíbrio espiritual; e que ela desenvolvia disciplina de massa, ao
invés da personalidade individual.” (p. 114)
Assim como as
objeções que B-P fez ao nazismo, lembrando que Joachim von Ribbentrop,
embaixador alemão na Grã-Bretanha, tentou uma reconciliação com Baden-Powell,
depois de Hitler ter criado a “Juventude Hitlerista”, o que foi igualmente
rechaçado por B-P (p. 115).
Quanto ao racismo,
Tim Jeal esclarece que as insinuações de que B-P teria sido racista se deve a
três episódios ocorridos na África do Sul quando ele atuava como oficial do
exército britânico.
O primeiro, numa
operação para localizar rebeldes Zulus em 1888, o que levou a, pelo menos, três
mortes, mas que Jeal entende que a situação estava fora de controle e que,
“mesmo que B-P tivesse dado ordens para poupar a vida dos rebeldes, é
improvável que os mercenários zulus obedecessem”.
O segundo, em
1897, quando B-P foi julgado pela execução de Uwini, líder rebelde Matabele
(havia provas de que Uwini tinha matado dois colonizadores brancos e B-P
ordenou que ele fosse submetido à Corte Marcial). Jeal considera que esta é a
acusação mais consistente feita contra Baden-Powell:
“Colonos brancos
estavam sendo assassinados em uma parte remota de Matabeleland. BadenPowell
tinha ordens para capturar o líder, Uwini, considerado responsável pela
rebelião. Como o Uwini foi ferido durante a captura e Baden-Powell duvidou que
ele sobreviveria a uma longa viagem à Cidade do Cabo para ser julgado por uma
Corte Civil, B-P o julgou numa Corte Marcial. O veredicto foi a morte, o líder,
então, foi executado.”
B-P foi levado a
julgamento por essa execução e inocentado. A defesa de B-P contra a acusação se
fundamentou no fato de que, de acordo com a lei militar, ele tinha o poder de
promover o julgamento se estivesse a uma distância superior a 100 milhas da
autoridade superior. A defesa destacou que não havia Corte Civil na área do
conflito e que a execução de Uwini facilitou a rendição final dos Matabeles,
evitando, desse modo, a perda de mais vidas (cf. O CHAPELÃO, de Antonio
Boulanger, Ed. Letra Capital, 3ª edição, p. 101).
O terceiro
episódio é a suspeita de que B-P teria deixado 2.000 negros africanos passarem
fome em Mafeking, tendo destinado a comida reservada aos nativos para alimentar
a população branca. Jeal é taxativo: “esta é uma mentira absoluta. Ele atirou
em todos os seus cavalos para que os nativos pudessem se alimentar.”
Ainda sobre o
racismo, uma reflexão que não pode deixar de ser feita é a seguinte: por que
uma pessoa “racista” traria tantos elementos de origem africana para o
Movimento que ela criou? Aperto de mão, colar da insígnia de madeira, canções,
danças, expressões, entre outros.
Mas, se isso não
bastasse, B-P foi fundamental para a abertura de uma brecha na política cruel
do Apartheid na década de 30, permitindo que jovens negros participassem do
Movimento Escoteiro, e que surgissem delegações inter-raciais dirigidas por
líderes negros em reuniões internacionais (“250 Milhões Escoteiros”, pp. 116 e
117).
Também não se pode
esquecer que B-P passou os seus últimos anos no Quênia e que, no Quênia, também
preferiu ser enterrado, embora o deão da Abadia de Westminster tivesse
oferecido um túmulo na abadia para os seus restos mortais (ser enterrado em
Westminster é uma homenagem reservada somente aos grandes nomes da história da
Inglaterra).
Outro aspecto
relevante a ser destacado é o de que
Nelson Mandela, Presidente da África do Sul (1994-1999), símbolo maior
da luta contra o Apartheid, aceitou ser patrono da Associação Escoteira da
África do Sul, quando assumiu a presidência do País em 1994, reconhecendo a
importância do papel do Escotismo na integração da sociedade sul-africana:
“O Movimento
Escoteiro é líder mundial na educação para a juventude, e é particularmente
relevante para as necessidades da juventude na África e nas democracias
emergentes em todo o mundo.” (“World Scouting Educating for Global Citizenship”,
Eduard Vallory, 2012, p. 51)
Por fim, Timothy
H. Parsons, professor de História da Washington University, em seu livro,
“Face, Resistance, and the Boy Scout Movement in British Colonial Africa” (Ohio
University Press, 2004), sublinha a importância do quarto artigo da lei
escoteira (O ESCOTEIRO É AMIGO DE TODOS, E IRMÃO DOS DEMAIS ESCOTEIROS) para a
difusão e consolidação do Escotismo no continente africano:
“Escoteiros
africanos e suas comunidades abraçaram o movimento para reivindicar os direitos
de cidadania plena na Sociedade Colonial. Eles usaram o quarto artigo da lei
escoteira para desafiar a discriminação racial existente, conhecida como a
‘barreira da cor’. Igrejas e escolas independentes africanas criaram tropas
escoteiras, oferecendo aos africanos outro meio de contestar a subordinação
social. Na África anglófona, o Escotismo foi, portanto, um instrumento de
autoridade colonial e, ao mesmo tempo, um desafio subversivo à legitimidade do
Império.” (p. 6)
“O Movimento
Escoteiro tornou-se, assim, um local de intensa contestação quando os africanos
desafiaram a legitimidade política e social do regime colonial, com base na sua
interpretação da lei escoteira.” (p. 257)
Parsons aponta,
ainda, que o quarto artigo teve o seu papel no distensionamento da
discriminação racial, não só nos países da África, mas nos Estados Unidos e na
Índia, ajudando, inclusive, escoteiros de grupos considerados minoritários a
conquistar seu espaço em outros campos dos direitos civis (pp. 63 a 71).
Esse aspecto
social – e até revolucionário - do quarto artigo, concebido por ele próprio,
BadenPowell, reforça que B-P era definitivamente um homem à frente do seu
tempo, desprovido de qualquer atributo que pudesse ser qualificado como
racista, nazista ou fascista. Na verdade, B-P era um Embaixador da Paz,
entusiasta da Liga das Nações (que antecedeu à Organização das Nações Unidas –
ONU), diversas vezes indicado ao Prêmio Nobel da Paz, laureado com o Prêmio
Wateler da Paz em 1937; um homem, como disse Tim Jeal no prefácio do seu livro
sobre a vida de B-P, que “fez uma única e benéfica contribuição para a história
do século XX e que ainda não recebeu o devido reconhecimento.”
*Rubem Perlingeiro
foi Presidente da UEB (2001 / 2009-2012) e, atualmente, é membro do Comitê
Escoteiro Interamericano.
Este artigo
reflete a opinião pessoal do autor, e não da Organização Mundial do Movimento
Escoteiro ou da União dos Escoteiros do Brasil.
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