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GASOSA, COEL E A VELHA MARIA



 

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

Vovó Maria, mãe do meu pai, morreu aos 101 anos de idade. Maria Cabocla, como era chamada pelos amigos de infância. Neta de negro com índia, ancas largas, seios fartos e coxas grossas que mesmo sob as marcas da velhice ainda possibilitavam a percepção da bela mulher que inquietava a imaginação dos rapazes no extremo sul de Sergipe, onde viveu até a década de 40 do século XX.

Uma morena “papo de rola”, como gostava de se gabar aos descrever a sua beleza juvenil, numa referência ao peito estufado característico da ave conhecida como Rolinha-Fogo-Apagou. Em alguns lugares a mesma ave é Rolinha-Cascavel ou Rolinha-Pedrês. Os nomes mais comuns da Columbina Squammata, tal como aparece nos catálogos científicos de pássaros.

Viveu às turras com meu avô Epifânio, o marinheiro bonitão e de humor oscilante que me encantava ao narrar as bravuras da sua vida na Marinha Mercante, navegando nos mares do litoral de Sergipe, Bahia e Alagoas em 1942, quando o submarino alemão U-507 torpedeou os navios Baependi, Araraquara e Aníbal Benévolo nas águas do litoral sergipano. Sempre se irritava ao ser indagado por mim em tom debochado acerca do seu hábito de comparecer diariamente a Capitania dos Portos: “meu avô: o que o senhor vai fazer de novo na Capitânia?”. Chateado, respondia: “Eu sou um herói de guerra. Ainda não recebi todos os meus direitos da lei de praia” (benefício pecuniário pago aos que estavam embarcados ou nos portos na data do torpedeamento). Finalmente, sob a ditadura militar, na presidência de Emílio Médici, ele recebeu tudo que desejava.

Meu avô e minha avó de amavam de um jeito estranho. Ele reclamava dela 24 horas por dia. Cansei de ouvi-lo dizer: não morro em paz se eu não matar esta mulher antes. Mas, ele fazia questão, diariamente, de acordar pela madrugada, preparar cuscuz, café, leite, ovos, esquentar o pão, fritar na manteiga a carne do sol, servir a mesa e convidá-la para o pequeno almoço. Demonstração afetuosa de amor e carinho. Adorávamos almoçar com eles e comer as moquecas de cação que o meu avô Epifânio preparava. Ou jantar, degustando as cabeças de inhame, as macaxeiras e a batata doce que ele cozia à noite. Tudo sempre com muita manteiga e carne do sol.  

As enfermidades senis da velha Maria se instalaram desde que ela se fez septuagenária, avivando a sua memória remota, nos enriquecendo de histórias maravilhosas com lembranças que remetiam a sua infância, adolescência e juventude nos manguezais da sua querida Espírito Santo, hoje Indiaroba, às margens do rio Real. A senilidade produziu outros estragos, como a recusa ao banho diário. Os banhos ocorriam sempre sob pressão dos seus filhos e netos.

Nas suas lembranças, Maria Viana falava da sólida amizade com Dona Tude, a severa professora Gertrudes, responsável por iniciar meu pai, Antônio, e os outros meninos da cidade de Indiaroba no caminho das primeiras letras. Ou das jocosas histórias do Mestre Otávio, a quem conheci e que chamava a atenção de todos nós pelo avantajado volume desarrumado em suas calças, decorrência de uma hidrocele bilateral nunca tratada e nem curada.

Mestre Otávio era ferreiro e os meninos de Indiaroba adoravam frequentar sua oficina à noite, bater o fole para avivar o braseiro e atirar os minúsculos pedaços de limalha de ferro incandescente no brejo que havia contíguo à oficina. Aquele ponto vermelho voando sobre a lagoa confundia os cururus que se apressavam em pular e engolir o pretenso vagalume. Na manha seguinte, dezenas de sapos mortos com a barriga furada. Brincadeira perversa de um tempo e um lugar onde a consciência ambiental passava ao largo.

Assim era a vida em Indiaroba e assim eram as histórias de Vovó Maria.

A gula era uma das suas marcas distintivas. Com o meu primeiro fusca, ia busca-la em casa e a levava à barraca de Seu João, ao lado da Catedral, em Aracaju. Ficávamos no carro. Eu pedia duas unidades do cachorro-quente mais famoso de Aracaju. Um pedaço de pão francês recheado com um molho de batatas que eventualmente poderia contemplar algum naco de carne moída, tudo coberto com alface em abundância. Desde os tempos que eu estudava no Colégio Atheneu, uma iguaria incomparável. Todos gostavam. Até hoje, não sei bem porquê.

O máximo daquele lanche vespertino era ter a sorte de parar ao nosso lado um carrinho da laranjada Coel. A indústria fez sucesso em Aracaju, nas décadas de 60 e 70 de século XX. Era tocada por Arati e seus familiares, um colega dos tempos do Atheneu que deixou a vida ainda muito jovem, levado por um infarto do miocárdio. A bebida era laranja esmagada, misturada com muita água, bastante açúcar e gelo.

O produto era vendido a varejo em Aracaju, por uma frota de carrinhos de mão. Em cada um deles, um tanque metálico cheio de laranjada, uma grande serpentina fina coberta por muito gelo e uma bomba que era acionada manualmente e enchia um copinho de papel em forma de cone. Tão gelado que o frio impactava o esmalte dos dentes e a têmpora. Vovó Maria odiava aquilo.

Ao observar o meu prazer sorvendo aquela laranjada, ela desandava a contar a satisfação dos seus contemporâneos quando consumia as gasosas. A mistura de água, gás carbônico e o suco de alguma fruta era apreciadíssima nas cidades desenvolvidas que ela conheceu na primeira metade do século XX: Estância, Aracaju e Salvador. A senilidade não conseguira tirar dela o prazer da gula. Assim, manteve alguns hábitos que possuía desde que vivera em Indiaroba. No almoço não dispensava um “rabo de galo” (mistura de aguardente com vermute Cinzano) para abrir o apetite.

Quando comíamos o cachorro-quente do Seu João, tinha duas opções de bebida. Se não houvesse a sua principal preferência ela se contentava com uma Sukita, estranho gosto de refrigerante que eu só vi se repetir na minha família com a prima Ana Romualda que vive em Vitória do Espírito Santo, sobrinha de Petrina, a minha avó materna. Mas, o que a fazia feliz mesmo era um refrigerante que nem a prima Ana Romualda gosta de consumir: Fanta Uva.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.


Comentários

  1. Excelente imagem que retrata tantas nuances de nossa cultura! Parabéns!

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  2. 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼🙌🙌

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  3. Muito interessante essas suas memórias. Me deu vontade de tomar Coel!.

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