Prof. Dr.
Jorge Carvalho do Nascimento*
O baixo preço dos
livros da Biblioteca do Povo e das Escolas criava a possibilidade de superação
daquilo que se entendia ser uma das maiores dificuldades ao desenvolvimento da instrução
popular: a má seleção e a carestia dos livros adotados nas escolas. Estava
claramente posta a intenção de combater “a imposição odiosa dos detestáveis
compêndios de ensino, eivados de erros grosseiros e vendidos por preços
absolutamente incompatíveis com a exiguidade de recursos das classes
trabalhadoras e pobres” (“Quatro páginas de prólogo”. Op. cit.).
Aparecia, portanto,
com muita força, a natureza didática da coleção, aquilo que o discurso do final
do século XIX chamava de propaganda instrutiva. “Não é fundando escolas
superiores e cursos de preparatórios difíceis que se ilustra um povo, mas
fazendo propaganda, e tornando acessíveis a todos as artes, as ciências e as
letras” (Diário de Notícias, nº 7.149. Lisboa, 13 de Dezembro de 1885) – afirmavam
os editores. Vanguardista, em algumas ocasiões a coleção teve de advertir os
seus leitores acerca da incompatibilidade entre o conteúdo científico dos
volumes e o padrão moral vigente à época. O volume 128, que tem como título O
Macho e a Fêmea no reino animal, previne os pais-de-família e os pedagogos que
o texto “não constitui leitura adequada a pessoas de menor idade” (FURTADO, F.
de Arruda. O macho e a fêmea no reino animal, Lisboa, David Corazzi Editor,
1886).
O plano original da
obra foi cumprido com a publicação das oito primeiras séries. A previsão do
projeto inicial era de que a coleção deveria abranger sete grandes áreas do
conhecimento, a saber: Educação Corporal, Zoologia, Física, História,
Literatura, Jurisprudência e Linguística. O enorme sucesso comercial, contudo,
levou a que se publicassem mais 21 séries além das oito inicialmente previstas.
Os 237 livros
publicados ao longo dos 42 anos em que a coleção circulou foram produzidos por
91 pesquisadores. Destes, não foi possível identificar as profissões de 14
autores. Dos 77 restantes, dois eram engenheiros agrônomos, dois tipógrafos,
cinco médicos, 22 oficiais militares do exército e da marinha, um comerciário,
três estudantes de direito, um farmacêutico, um estudante de letras, 18
professores, um telegrafista, um ator, quatro funcionários públicos, três
escritores, um naturalista, um advogado, três estudantes de artes industriais e
comerciais, um poeta, um botânico, dois sacerdotes, um cenógrafo, um estudante
de agronomia, dois jornalistas e um estudante de medicina. Dentre os 91 autores
foi possível identificar a presença de apenas dois brasileiros. Os demais eram
portugueses.
O editor não
esclarece os nomes dos responsáveis pelos volumes 62 (Fabulas e Apólogos) e 69
(Livro do Natal). Dentre os autores, João Maria Jalles é responsável pela maior
quantidade de textos publicados – 13 deles. Tenente da Artilharia do Exército
de Portugal, escreveu os volumes versando sobre Mineralogia, Geologia,
Gravidade, Ótica e Mecânica e Magnetismo. Já promovido Capitão de Artilharia,
escreveu Fotografia, Equitação, Metalurgia, Trigonometria, os Balões em
Portugal, Artilharia, Aerostação e Problemas de Aritmética.
Depois de Jalles, é
de João Cesário de Lacerda a segunda mais volumosa contribuição. O médico e
jornalista português escreveu os textos de 11 volumes: Introdução às Ciências
Físico-Naturais, Corografia de Portugal, Economia Política, Higiene, As
Colônias Portuguesas, O Código Civil Português, Anatomia Humana, Fisiologia
Humana, História Antiga, História da Idade Média e As Ilhas Adjacentes.
Vale a pena
registrar a ausência de mulheres dentre os autores, mesmo nos temas à época
considerados como próprios do gênero, a exemplo do Livro das Mães, Higiene da
Beleza, O Feminismo na Indústria Portuguesa, Receitas Úteis, A Mulher na
Antiguidade, Higiene da Habitação, Copa e Cozinha, Higiene do Quarto da Cama e
a Missão da Mulher. Tal ausência pode nos dizer um pouco acerca do papel social
da mulher no final do século XIX.
Sabemos que os
primeiros livros escolares adotados entre nós foram trazidos para cá pelos
Jesuítas. No século XIX o Brasil começou a produzir os seus próprios livros
didáticos, através da Impressão Régia. É sabido que isto ocorreu em função das
guerras napoleônicas e da interrupção do envio de livros produzidos na Europa
para cá. Com o restabelecimento do fluxo comercial de livros da Europa para o
Brasil, refluiu a experiência de produção de livros didáticos no novo Império.
Afinal de contas, o mercado do livro didático por aqui era muito pequeno.
Comercialmente não havia grande interesse por parte das casas editoras
estabelecidas no país. “Os métodos primitivos de ensino usados por muitas
escolas dispensavam inteiramente o uso de livros” (HALLEWELL. Op. cit. p. 144).
É recorrente
encontrar em documentos do século XIX queixas como as formuladas pelos
missionários norte-americanos Kidder e Fletcher, em 1850, quanto a ausência de
livros didáticos produzidos em território brasileiro ou, ao menos, adequados às
condições locais. Tal problema era visto como impeditivo ao desenvolvimento da
educação nacional. Mesmo o esforço de editores como Baptiste Garnier não foi
suficiente para o suprimento das necessidades brasileiras na área.
As dificuldades do
mercado brasileiro do livro didático possibilitaram que durante toda a segunda
metade do século XIX e pelo menos durante as duas primeiras décadas do século
XX muitos editores portugueses continuassem a produzir livros escolares –
didáticos e complementares do trabalho escolar – destinados a estudantes
portugueses e brasileiros. Em certa medida, tal problema ajuda a compreender o
êxito entre nós de uma coleção como a Biblioteca do Povo e das Escolas,
concebida para estudantes dos dois países. Lançada no início dos anos oitenta,
oito anos antes da proclamação da República por aqui, a coleção teve a
possibilidade de prosperar no exato momento em que “a qualidade da educação
básica, pelo menos nas províncias mais ricas, tinha melhorado suficientemente
para criar um mercado viável de livros” (Idem. p. 145).
De fato, as duas
últimas décadas de existência do Império apresentaram uma razoável melhora no
quadro de indicadores da educação. O número de escolas passou de 3.561 para
7.500. O desenvolvimento dos negócios do café, no alvorecer do período
republicano permitiu que pelo menos no centro e no sul do Brasil fossem feitos
alguns investimentos de vulto para a melhoria da qualidade do ensino. “Mais
importantes para o mercado de livros didáticos foram os grandes progressos nos
métodos educacionais” (Idem, p. 208). Somente na cidade de São Paulo, o índice
de alfabetizados que era de 45% em 1887, já era de 75%, em 1920.
*Jornalista,
professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e
presidente da Academia Sergipana de Educação.
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