Jorge
Carvalho do Nascimento*
Buscando
entender o processo de organização das primeiras práticas de pesquisa
científica em Sergipe, este texto analisa algumas dificuldades metodológicas
encontradas durante o processo de realização de uma pesquisa sobre tal
trajetória histórica.
O trabalho
foi delimitado temporalmente entre os anos de 1817 e 1822, por serem estes os
anos durante os quais a expedição de Antônio Moniz de Souza esteve viajando
pelos territórios das Capitanias da Bahia, de Sergipe D’El Rey, de Alagoas e
Pernambuco, enfatizando principalmente o ano de 1818, durante o qual o
pesquisador permaneceu em Sergipe.
Estas
notas surgiram a partir da necessidade de estudar a História da Ciência e da Tecnologia
em Sergipe, para entender o funcionamento das instituições científicas e tecnológicas
organizadas, que se disseminaram ao longo dos séculos XIX e XX. Assim, procurou
compreender os procedimentos científicos e tecnológicos próprios a esse tipo de
atividade, o que envolve categorias analíticas capazes de estabelecer
distinções e menções a teorias.
A
modalidade de ciência e tecnologia aqui analisada diz respeito ao modo como
esse fazer era considerado no Brasil ao longo do século XIX. O ensino de
ciência e tecnologia em instituições escolares não é objeto desta análise, não
obstante, eventualmente, aparecerem também referências a este tipo de prática
escolar.
A ciência
e a tecnologia podem ser analisadas sob diferentes aspectos. O que se propõe
aqui é o entendimento das diferentes propostas e das práticas de pesquisa mais importantes
que, ao longo do século XIX, marcaram a atuação dos intelectuais que habitaram
esta parte do território brasileiro que é Sergipe.
A
participação de Sergipe no processo de organização de uma rede brasileira de
práticas científicas ao longo do século XIX é um tema que não recebeu a devida
atenção da produção historiográfica. Mesmo existindo alguns estudos sobre a
atividade intelectual durante a centúria oitocentista, a pesquisa científica e
tecnológica ainda não foi objeto de estudos em grande quantidade por parte dos
pesquisadores que se dedicam a investigar a História.
De um
modo geral, são poucos os estudos de História que se debruçam sobre a
investigação da História da Ciência e da Tecnologia. O problema que requer
maior atenção neste debate diz respeito ao conjunto de representações sobre a História
do Brasil, disseminado a partir do movimento republicano.
Dentre as
ideias difundidas está presente uma quase consensual certeza de que as práticas
científicas brasileiras são obra exclusiva do republicanismo, desfocando assim
as discussões a respeito deste problema. É evidente que o Estado republicano
efetuou transformações no discurso a respeito da ciência. Porém não se pode
afirmar que tais preocupações e concepções eram novas na sociedade brasileira.
As
alterações no discurso acerca da pesquisa científica e tecnológica durante a
Primeira República, além da busca de legitimação política do regime, são
reveladoras do modo como os campos acadêmicos buscavam legitimar-se sob a
condição de serem conhecimentos científicos suficientes para a solução dos
problemas existentes na vida brasileira.
O estudo acerca da História da Ciência e da Tecnologia cria possibilidades de
uma melhor compreensão sobre o vigoroso debate que se instalou no Brasil
durante o século XIX e persistiu, atravessando as primeiras décadas do século
XX. Um debate que reunia cientistas, políticos, médicos, militares, professores
e outros intelectuais. Todos eles buscando apoiar-se em preceitos
cientificistas.
A maior
parte da bibliografia sobre o assunto produzida no Brasil prioriza o período
republicano e ao fazê-lo escamoteia a importância que teve esse debate durante
o século XIX em todo o país e, particularmente, na região Nordeste. Um período
da maior importância, no qual o Romantismo marcou as visões de política, literatura,
moral e ciência; quando a moral religiosa enfrentou o ateísmo e o evolucionismo
consolidou-se; o Segundo Império implementou o seu liberalismo e viu a
decadência monárquica, ao tempo em que a unidade nacional se consolidava.
A
elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer
regime político. É por meio do imaginário que se pode atingir não só a cabeça,
mas, de modo especial, o coração, isto é, as aspirações, os medos e as
esperanças de um povo. É nele que as sociedades definem suas identidades e
objetivos, definem seus inimigos, organizam seu passado, presente e futuro.
Captar
alguns problemas metodológicos para a compreensão das práticas civilizatórias
dessa História é propósito deste texto. O caminho escolhido remete o trabalho a
olhar as práticas científicas por dentro, apanha-las, priorizando esse enfoque
sem, contudo, desprezar o âmbito das suas relações com a vida social, uma vez
que as práticas científicas e tecnológicas de cada sociedade correspondem a
suas necessidades.
Compreender
a natureza de tais práticas é fundamental para entender as propostas, os modelos
e o conhecimento produzido no Brasil do século XIX; para analisar o processo de
difusão do conhecimento científico e tecnológico no Brasil do século XIX; para
entender o caráter que tiveram essas práticas e os padrões civilizatórios que
estabeleceram.
Porém,
para operar assim é necessário entender que em boa parte dos estudos sobre o
assunto a ciência aparece de modo assemelhado àquele que Edward Thompson dizia
no livro Senhores e Caçadores (1987, p. 349) haver sido usado para analisar-se
a lei: “na forma de um marxismo sofisticado, mas (em última instância)
altamente esquemático, que, para nossa surpresa, parece brotar das pegadas
daqueles que, entre nós, pertencem a uma tradição marxista mais antiga”.
Para os
adeptos desta tradição, a ciência é por definição uma parcela da
“superestrutura” que se adapta às necessidades de uma infraestrutura de forças
produtivas e relações de produção. Em outras palavras, um instrumento dos
grupos dominantes que define e viabiliza o domínio sobre a força de trabalho.
O
entendimento é o de que a ciência e a tecnologia estabelecem e legitimam formas
de saber, regras e sanções que confirmam e consolidam o poder do grupo
dominante. Deste modo, o poder da ciência seria o da legitimação do domínio de
um grupo social. Por isto, outra vez de acordo com Edward Thompson no mesmo
trabalho citado, os adeptos da teoria marxista muitas vezes entendem a ciência
“como um fenômeno do poder e da hipocrisia da classe dominante” (p. 350).
Tomar a
ciência deste modo seria fazer tabula rasa do terreno da Historiografia,
tentando descobrir algo que pode ser conhecido sem nenhuma investigação. Daí a
necessidade de abandonar alguns pressupostos correntemente aceitos. É
necessário aceitar parte da crítica marxista.
De fato,
há evidências que confirmam as funções da ciência e da tecnologia como
expressão de um grupo social. Mas, é preciso considerar também a ciência em
termos de sua lógica, das suas regras e dos seus próprios procedimentos. A
ciência como ciência, sem a qual não é possível conceber a organização da vida
em uma sociedade complexa.
Novamente,
recorro a Edward Thompson, para entender que a ciência, “como outras
instituições que, de tempos em tempos, podem ser vistas como mediação (e
mascaramento) das relações de classe existentes (como a Igreja ou os meios de
comunicação) tem suas características próprias, sua própria história e lógica
de desenvolvimento independentes” (p. 353).
Os
estudos sobre ciência e tecnologia não podem estar subordinados a uma
perspectiva teleológica. Para que a pesquisa histórica tenha significado é
fundamental que o pesquisador renuncie àquilo que deseja, que acredita que deve
ser ao investigar o que é e o que foi.
O
processo civilizador é considerado nestas reflexões a partir da abordagem de
Norbert Elias (ELIAS, 1994 O Processo Civilizador). Ele acredita que o homem é
socialmente civilizado. A civilização é o resultado de um processo ao qual as
pessoas são submetidas. Elias ocupa-se da história a partir de agentes individuais
que se apresentam combinados com outros em configurações específicas.
Para
tanto, é fértil o seu diálogo com Freud, uma vez que segundo este último, a
inclusão do indivíduo num grupo vem acompanhada de práticas que devem ser
incorporadas. Buscando a felicidade, o homem procura escapar às imposições da
civilização e eliminar as práticas que lhe causam sofrimento. Mas, a realização
fora dos padrões de civilidade também não é possível. Então, é preciso adotar
as práticas conhecidas, utilizando-as como mecanismo de proteção.
Os
procedimentos adotados por este texto consideram que
conceitos como indivíduo e sociedade não dizem respeito a dois objetos que
existiram separadamente, mas a aspectos diferentes, embora inseparáveis, dos
mesmos seres humanos. Ambos se revestem do caráter de processos e não há a
menor necessidade, na elaboração de teorias sobre seres humanos, de abstrair-se
este processo-caráter.
Na
verdade, é indispensável que o conceito de processo seja incluído em teorias
que tratem de seres humanos. Pode-se dizer com absoluta certeza que a relação
entre o que é denominado conceitualmente de indivíduo e de sociedade
permanecerá incompreensível enquanto esses conceitos forem usados como se
representassem dois corpos separados, e mesmo corpos habitualmente em repouso,
que só entram em contato um com o outro depois, por assim dizer (ELIAS, 1994, p.
220-221).
*Jornalista, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
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