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O JURI




 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

O dia foi de festa. Final do mês de novembro de 1948, todos estavam felizes nas duas margens do rio São Francisco. O presidente Eurico Gaspar Dutra desembarcou do hidroavião e foi recebido pelas autoridades civis lideradas pelos prefeitos de Petrolina, do lado Pernambucano, e de Juazeiro, no lado da Bahia.

As autoridades militares tiveram o reforço do general Comandante da Região, que viajou de Salvador até lá, uma vez que não seria de bom tom permitir que o presidente da República fosse recepcionado apenas pelo Sargento Valdez que comandava o Tiro de Guerra petrolinense. À frente das autoridades eclesiásticas, Dom Avelar Brandão Vilela, então bispo de Petrolina.

Em nome das classes produtoras ribeirinhas, o coronel Joãozinho Maia fez um entusiasmado discurso de boas vindas ao chefe da nação. Sob o sol causticante de fim de primavera, o calor no sertão pernambucano naquela tarde era de 37 graus. Intensos, os raios do astro rei facheavam sempre que encontravam a goma do terno de linho branco ou o metal das medalhas bem polidas presas ao peito daquele líder sertanejo que era tido naquelas bandas como um herói nacional. Rigorosamente trajado para a ocasião, com a sua vistosa gravata preta adornada em minúsculos bordados de petit pois amarelo, a mesma cor do lenço de cambraia cuidadosamente dobrado em quatro pontas simetricamente salientes no bolso frontal do paletó. O chapéu de baeta social marrom da marca Ramenzoni adornava a cabeça, guardando a negra e basta cabeleira brilhante como a asa da graúna. Assim estava o vaidoso coronel Joãozinho Maia.  

A sua elegância somente era suplantada pela própria esposa, trajando vistoso vestido de seda azul marinho, guarnecido por forro preto e anáguas da mesma cor que protegiam zelosamente as vergonhas da madame, mas permitiam pelas dobras da leveza própria ao esvoaçante tecido divisar o bem desenhado contorno das suas volumosas ancas e das  sedutoras mamas de Dona Nata, das quais o baixinho marechal presidente Dutra não conseguia desgrudar os olhos. Os pés da gazela protegidos por fino par de sapatos modelo scarpin preto de camurça, em salto agulha 13, o que lhe impunha um extraordinário esforço para manter a postura e a elegância sobre o palanque de tábuas desalinhadas.  

O discurso do coronel Joãozinho Maia exaltou as tradições da sua família. Bisneto do coronel Maneca Maia, do Exército de Caxias, que servira na Guerra do Paraguai e ao retornar fora eleito deputado do Império, representando a Bahia. Após o exercício do seu único mandato recebeu o título de comendador. Neto do senador Erenildo Maia, fundador da maior companhia de navegação do Médio São Francisco, proprietário de 19 navios a vapor, dos quais oito do tipo gaiola, dotados de imponentes rodas d’água. Filho do médico Rudimar Maia, como ele coronel da Guarda Nacional, fundador do Hospital de Beneficência de Petrolina.

Não esqueceu de informar ao presidente que ele, coronel Joãozinho Maia, era um homem ilustrado. Engenheiro civil formado em Oxford, no Reino Unido, a melhor e mais tradicional escola da especialidade no mundo. Por fim, fez questão de afirmar ser herdeiro de todos os negócios que já descrevera e haver juntado ao seu patrimônio a abundante herança da sua mulher, Maria Regina Sampaio Pereira Ribeiro Coelho Maia. Mesmo com nome tão pomposo, a dama era conhecida na região como Dona Nata, assim chamada pela alvura da sua sedosa pele que nem o causticante sol do sertão pernambucano conseguia enodoar.

Filha única, Dona Nata herdou dos pais a Fazenda Boa Vista, propriedade rural tão grande que os limites se assentavam sobre quatro municípios da margem esquerda do rio São Francisco. Isto fazia do coronel Joãozinho Maia o maior criador de gado bovino e caprino, o maior produtor de leite e carne e maior produtor de feijão, melancia, milho e mamona daqueles sertões. Nas terras da Fazenda Boa Vista o coronel Joãozinho Maia implantou uma indústria de beneficiamento de mel de abelhas e uma olaria. Empreendedor de espírito metropolitano e dado ao mecenato, ele mesmo construiu, importou o equipamento da Inglaterra, mobiliou e inaugurou em 1946 o majestoso cinema da cidade.

Ninguém representava melhor as classes produtoras locais que aquele casal chefiado pelo coronel Joãozinho Maia. E foi em nome de todos que ao final do seu discurso, sob estrepitosos aplausos, ele fez entrega ao visitante ilustre de um kit contendo sela de couro, estribos de prata, chicote, perneiras, gibão e chapéu de couro produzidos pelos melhores artesãos da tradicional cidade baiana de Juazeiro, a irmã gêmea de Petrolina, situada à margem direita do rio São Francisco.

A oração gratulatória do marechal Dutra foi rápida. Não se sabe o porque da pressa. Talvez pela contrariedade de desviar os olhos do atraente busto que aformoseava as curvas do corpo de Dona Nata. Ou, quem sabe, preocupado em viajar de volta a Salvador, na Bahia antes que o sol se fizesse poente, o que inviabilizaria a operação de decolagem do hidroavião. Aplausos, bateu simbolicamente a primeira estaca que iniciava a construção da ponte rodoferroviária sobre o rio São Francisco, ligando as cidades de Petrolina e Juazeiro que nasceram separadas pelo Velho Chico.

Festa acabada, Dutra voou e o casal coronel Joãozinho Maia e Dona Nata embarcou no luxuoso automóvel da família, um Chevrolet Stylemaster, importado dos Estados Unidos da América naquele mesmo ano e se recolheu a sua casa na cidade. Liberou o seu capanga Afrânio, um galego corpulento de quase dois metros de altura, famoso pela certeira pontaria que lhe permitia colher mangas atirando no talo do fruto pendente com o seu parabellum.

Afrânio foi encontrar os amigos na quermesse armada na praça da Catedral, igreja devotada ao Sagrado Coração de Jesus. Sentou com Raul da Onça, Arnaldo Beiço, Pedro Careca e Tonho Pança. Não teve tempo de tomar o primeiro trago. Na mesa ao lado, João Dutra, rosto colado com Marlene Baiana, a bonita dançarina de pele ébano e ancas largas, teúda e manteúda de Afrânio.

Reação imediata, Afrânio levantou João Dutra pelo colarinho da camisa de gabardine, puxou a peixeira que carregava na cintura e com um único golpe certeiro na lombar deixou Dutra caído ao chão, montou no cavalo e fugiu para se esconder nas terras da Fazenda Boa Vista.

Ali, estava em segurança. A polícia jamais se atreveria a invadir a propriedade do coronel Joãozinho Maia. Oito meses sem sair dos limites da fazenda. O homicídio caíra no esquecimento e Afrânio resolveu ir à feira de Juazeiro numa manhã de sábado.

Recém chegado à cidade baiana, investido no posto de delegado, Zé Lopes recebeu a denúncia de um foragido da Justiça perambulando a cavalo entre as barracas dos feirantes. Mal imaginava a confusão política que iria provocar, o que custou a sua demissão do cargo, alguns dias depois. Chamou o sargento, o cabo e os três soldados com as carabinas no ombro e foi ao encalço do homicida que acabou preso.

Nada mais a fazer, o promotor Ramiro ofereceu denúncia e o magistrado Rui Batista, homem envolvido até a medula com a política e os poderosos da região, foi obrigado a levar Afrânio ao júri popular. Debates concluídos, o Dr. Rui conduz os jurados até a sala secreta e os orienta quanto a primeira questão que deveriam responder. “Na sua opinião, o réu Afrânio é responsável pelo evento que produziu a morte de João Dutra?” Para que não restasse qualquer dúvida, o Dr. Rui informou ao corpo de jurados: “se vocês responderem sim, condenam o réu. Se responderem não, além de absolver o réu atendem a um pedido do coronel Joãozinho Maia”.

 

 

*Jornalista, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.


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