Jorge
Carvalho do Nascimento*
O
ambiente era tenso na noite da primeira segunda-feira do mês de março de 1970
na sede do Movimento Democrático Brasileiro – o MDB, em Aracaju. Para os
padrões climáticos da cidade aquela era uma noite fria e muita gente já havia
preparado a cama com o edredon: 24 graus. Desde o final da tarde um borrifo de
chuva molhava as calçadas da cidade.
Não
era uma chuva forte, nenhum aguaceiro. Á água caía do céu naquela forma bem
definida por uma canção de Dorival Caymmi. Uma chuvinha cotinha. Bem
agasalhados, os militantes do partido iam chegando um a um, com semblante de
preocupação. A decisão que seria tomada era da maior importância.
Na
sede do MDB estavam reunidos 27 pré-candidatos a vereador disputando vagas numa
lista que legalmente só tinha espaço para 26 nomes. Um deles sairia dali
eliminado. No final de semana a lista deveria chegar certinha na convenção
partidária que a homologaria. Era necessário encaminhar a relação ao Tribunal
Regional Eleitoral, dentro do prazo que a lei estabelecia.
Todos
foram recebidos pelo Secretário da agremiação, Antônio Tavares de Jesus, o
Totonho. Além dele, os membros dos diretórios municipal e estadual. Todos eles
e mais 26 dos 27 pré-candidatos conversavam entre si, a boca miúda, e nutriam
esperanças de eliminar Cosme Fonseca de Oliveira, o Fateira, da lista de
candidatos.
Fateira
disputou o seu primeiro mandato parlamentar em 1967, pelo MDB. Foi o primeiro
suplente e assumiu o cargo no parlamento municipal após a renúncia do vereador
Wilson Moura. A sua principal bandeira de campanha lhe rendeu o apelido que
carregaria pelo resto da vida: Fateira Vida confortável com a remuneração e
depois a renda de aposentado, como segurança do Senado Federal, em Brasília.
Emprego público que lhe fora conseguido pelo senador Passos Porto, seu fiel
amigo de sempre e conterrâneo do município de Itabaiana.
Em
1967, Cosme fez a sua campanha de candidato a vereador lutando para que o
médico Gileno da Silveira Lima, prefeito da capital do Estado de Sergipe,
desistisse de impedir a presença das fateiras no setor destinado a venda de
carne bovina do Mercado Antônio Franco, o mercado central de Aracaju, ou
mercado velho, como era conhecido pela população.
Efetivamente,
as vísceras bovinas, o fato, era a fonte de proteína consumida pelos mais
pobres, mesmo com todos os riscos à saúde inerentes ao produto. As entranhas do
gado, além de tudo, empesteavam o ambiente do mercado com o odor característico
das nádegas de pessoas que não cuidam muito bem da higiene pessoal. Mas,
retirar aquele produto da área das carnes significava reduzir as possibilidades
de acesso a uma fonte de proteína por parte dos muito pobres, além de extinguir
a fonte de renda das fateiras, igualmente pobres.
O
menu de críticas ao chefe do poder executivo municipal que o candidato Cosme
esgrimia não parava por aí. Ele também afirmava que o gestor da capital não
cuidava da limpeza da cidade e que esta era feita exclusivamente por uma ave de
rapina que sempre existiu abundantemente em Aracaju, ao ponto de batizar a
maior das colinas existentes: o Morro do Urubu.
Numa
Câmara de Vereadores que sob a ditadura militar tinha como principal
preocupação oferecer títulos de cidadania aos oficiais das forças armadas que
chegavam de outros Estados para comandar as tropas, os temas do discurso de
Cosme não foram capazes de sensibilizar os seus pares depois que ele assumiu o
mandato. E tudo passaria sem que ninguém notasse, caso o polêmico parlamentar
não tivesse uma ideia inusitada.
Enquanto
os vereadores da capital continuavam oferecendo títulos de cidadão a militares
e gerentes do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal que vinham de outros
lugares, Cosme deu entrada em um projeto de lei concedendo cidadania aracajuana
ao Urubu. Numa época em que os parlamentos eram tutelados pelas organizações
militares, alguns oficiais fizeram gestões e no dia em que o projeto foi
colocado em pauta, o único a votar com a proposta foi o seu autor.
Mas,
Fateira já conseguira o que desejava. Toda a imprensa de Sergipe, o jornal A
Tarde, no Estado da Bahia; o Diário de Pernambuco e a Gazeta de Alagoas; O
Globo e o Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro; a Folha de São Paulo e o Estado
de São Paulo; Zero Hora, em Porto Alegre; Clarin, na Argentina; Le Monde na
França; e, a revista Time, nos Estados Unidos da América, deram ao fato ampla
cobertura e abriram generosos espaços para as entrevistas que fizeram com o
vereador Fateira.
Mas,
tal notoriedade causou a maior ciumeira entre os seus pares, tanto os da
Aliança Renovado Nacional – Arena, o partido que apoiava a ditadura, quanto no
seu partido, o MDB. Todos consideravam constrangedora e desonrosa as motivações
daquela repercussão. E desejavam retirar de Cosme o direito a reeleição. E
Totonho, o “rei” das manobras eleitoreiras no MDB, ficou encarregado de cumprir
a tarefa.
Aberta
a reunião, todos se manifestaram dizendo da importância da própria candidatura,
os dirigentes partidários lamentaram a necessidade de excluir um companheiro.
Tavares, para demonstrar a lisura do processo, disse que a exclusão seria feita
por sorteio. Colocou 27 papeis previamente preparados e dobrados em um pote de
vidro. O nome que fosse retirado no sorteio seria excluído da chapa.
Um
dos participantes da reunião foi acompanhado de um filho adolescente. Totonho
chamou o menino e pediu: “meu filho, retire somente um papel deste pote de
vidro”. Quando o papel foi aberto, surpresa e tristeza presentes numa encenação
coletiva. Todos foram solidários com Cosme Fateira, cujo nome estava registrado
naquele pedaço de papel.
Imediatamente
Tavares enfiou a mão no pote, apanhou os 26 papeizinhos restantes e os atirou
pela janela do terceiro andar do escritório do partido. Ata lavrada, todos a
assinaram, inclusive Cosme Fateira. Reunião encerrada, desceram juntos.
Continuava a cair a chuva cotinha. A água molhou os 26 pedacinhos de papel
atirados pela janela. Cosme olhou e correu na direção de Totonho, enquanto
este, já ao volante do carro, deu a partida e saiu apressado.
Cosme,
desesperado, olhava os papeizinhos abertos pela umidade e espalhados pela
calçada. Em cada um deles, a mesma incriação: “Cosme Fateira, Cosme Fateira,
Cosme Fateira, Cosme Fateira, Cosme Fateira, Cosme Fateira, Cosme Fateira,
Cosme Fateira...”
*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
Sou testemunha...
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