Jorge
Carvalho do Nascimento*
Quando a Gazeta de
Sergipe celebrou o seu décimo segundo aniversário (antes era Gazeta
Socialista), a jornalista Clara Angélica Porto estreou como colunista social.
Na edição do dia 14 de janeiro de 1968, ao assinar a coluna Vida Social pela
primeira vez, Clara anunciou num texto de abertura aquilo que pretendia realizar. “Depois
de desaparecer por alguns dias, volta agora mais uma coluna social da Gazeta de
Sergipe. Esperamos que a nossa maneira de ver a vida social agrade aos nossos
leitores, pois procuramos dar o máximo de nós. Aos domingos faremos uma
reportagem mais ampla, com entrevistas e notícias várias, a fim de não nos
tornarmos monótonos. Vida Social deseja a todos os seus leitores um 68 cheio
das coisas boas que o mundo ainda tem”.
A coluna manteve um
padrão próximo àquele seguido por jornalistas como Anderson Nascimento, Luiz
Adelmo e Ilma Fontes, porém em tom mais brando e menos revelador das paixões
ideológicas da jornalista, o que não impediu Clara Angélica de ter problemas
políticos com a ditadura militar que governava o Brasil. Fazia referências aos socialites
de sempre e aos novos ricos; entrevistava dirigentes de clubes sociais
influentes, como Clodoaldo de Alencar Filho, à época presidente da Associação
Atlética de Sergipe; casamentos dos filhos de famílias tradicionais; viagens de
gente chic; aniversários; concursos de beleza; e, fatos da vida política
e econômica.
A nova colunista
era um nome ligado às artes desde a infância. Havia atuado no rádio, na música,
no teatro, na literatura, mesmo sem haver completado ainda a idade de 17 anos.
Filha de família tradicional, atendeu o convite recebido do jornalista Ivan
Valença, então secretário de redação do jornal, mas as tratativas para que a
menor passasse a assinar a coluna foram feitas entre o diretor, fundador e
proprietário do jornal, Orlando Dantas, e o pai de Clara, Newton Porto.
A rigidez dos
padrões morais então vigorantes, impedia a colunista de ter acesso a redação, onde
somente trabalhavam homens. Os detalhes foram revelados pela própria Clara, em
entrevista que concedeu à jornalista Thais Bezerra, publicada pela própria
entrevistada em sua página do Facebook no dia 31 de março de 2019. “E assim foi
que me tornei a pequena musa da Gazeta. Todos os dias, por volta das 4 horas,
deixava minha coluna no balcão da frente com Ivan, ou seu Orlando. Ouvia as
vozes da redação, do outro lado da parede fina: Ela está aqui! Ancelmo Gois,
que na época era foca do jornal, encarregava-se de avisar. Ela hoje está de
azul... de amarelo... Ancelmo ficava olhando pela porta entreaberta que dava acesso
à redação. Nino Porto, meu irmão, mandava acabar a saliência. Eu tentava não
rir. E seu Orlando me olhava com aqueles óculos de leitura com aqueles olhos
cor de esmeralda e balbuciava algo inaudível que significava que a coluna
estava entregue e está na hora de ir embora. Eu adorava essa corte diária e
saía de lá me sentindo linda e querida. Ezequiel Monteiro, que também tinha
olhos de esmeralda, passou a deixar pequenos poemas diários no quadro verde de
avisos. Seu Orlando respeitava, Ivan curtia muito e não apagavam, para que eu
pudesse ler, afinal era poesia de Ezequiel para a musa do jornal. E assim é que
todos os dias, eu ganhava uma estrofe amorosa de Ezequiel, que hoje lamento não
ter anotado. Com o passar do tempo, daria um caderno. Aí Ancelmo, além de
anunciar somente ela chegou, anunciava tá lendo, tá rindo...”
A coluna Vida
Social repercutiu e se transformou em um espaço editorial importante do
periódico. Isto trouxe problemas para a jovem jornalista. Em pouco tempo, Clara
se transformara numa personalidade sobre a qual se fixava o foco dos holofotes
e gravitavam os comentários dos intelectuais mais badalados, como o escritor
Hunald Alencar e o seu pai, o poeta Clodoaldo de Alencar, para quem a coluna,
pelo seu teor político, deveria se chamar Vida Socialista e não Vida Social.
A jornalista
agitava culturalmente a vida social e cultural em Aracaju. Clara fazia teatro
e, ao lado do também jovem jornalista Pedrito Barreto, organizava festas na
cidade, sem saber que era observada pelo serviço secreto do Exército. Sem que
ela percebesse, os militares acompanhavam de perto todos os seus passos. Não
sem propósito, em face dos padrões que a ditadura militar estabelecera.
Clara era muito
ligada aos líderes estudantis Wellington Mangueira, João Gama e Jackson
Barreto, todos militantes do Partido Comunista. Fora convidada para compor a chapa encabeçada por Gama que disputou a gestão
do Diretório Central dos Estudantes, em 1968, logo após a instalação da Universidade Federal de Sergipe. Ganharam a eleição e, como seus
colegas, Clara Angélica entrou para a lista de militantes de esquerda que eram
vigiados pelos agentes de segurança do Exército em Sergipe.
Desde que, sob a
liderança de Gama, assumira a gestão do DCE, os passos de Clara Angélica eram
acompanhados discretamente por um jeep, o que foi percebido pelo senhor Ursino,
um seu vizinho, amigo do seu pai. Em janeiro de 1969, Clara estava veraneando na
ilha de Atalaia Nova com o pai, a mãe e os irmãos. Ela e o irmão Carlos Henrique
vieram a Aracaju. Ao chegar em casa, foram admoestados por um dos ocupantes do
veículo que sempre a seguia.
Intimada a depor no
quartel do 28 BC, reusou-se a entrar no jeep, mas se deslocou com o irmão em um
ônibus da linha do bairro 18 do Forte e na hora estabelecida estava nas
dependências do quartel do Exército. Foi interrogada durante sete horas por um oficial que
se apresentou a ela como Major Bandeira. Submetida a pressões e algumas
humilhações. Ao final o Major Bandeira a liberou por solicitação do general
Djenal Tavares Queiroz, amigo de Newton Porto, pai de Clara, que ao saber do
interrogatório mandou um emissário comunicar ao Major que se tratava de uma família por
ele conhecida e que não via na jovem jornalista as características de subversão
que os militares buscavam.
Mas, o
interrogatório impactou o seu trabalho como colunista social. Na entrevista que
Clara concedeu a Thaís Bezerra, aqui já citada, ela esclareceu. “O Major abriu
uma pasta e começou a me mostrar fotos onde eu aparecia, ora dançando feliz em
festinhas do DCE na Faculdade de Química, ora na praia, na piscina da Atlética,
comprando maquiagem em A Moda, na Faculdade, na posse do DCE. Depois jogava
colunas na minha frente onde eu defendia igualdade social, liberação da mulher;
em uma delas eu defendia maternidade para mulheres que queriam ser mães mas não
queriam casar; em outra eu louvava o conhecimento de História e Dialética de
Wellington Mangueira; em outra, uma crônica sobre o casamento do meu primo
Carlos Cruz com Maria Stael. O Major pedia o porque de cada coisa. Na crônica
de Carlinhos e Stael, eu encerrava falando da felicidade deles e de como era
triste que numa sociedade desigual, nem todos pudessem viver momentos lindos
como aquele.
(...) o Major (...)
passou a me dar conselhos. Que me limitasse a escrever sobre crônica social,
que não falasse de política, muito menos de política estudantil. (...) Então
ele passou a me perguntar se eu conhecia Wellington, João Gama, Jackson
Barreto, Didi Macedo, Alencar e Aglaé, uma lista imensa. (...) Tornei-me mestra
em falar e falar e nada revelar.
(...) A partir
daquele momento, minhas colunas seriam previamente censuradas e só se
publicaria o que passasse. Fez uma lista de assuntos que eu não podia escrever.
(...) Ao chegar na Gazeta para deixar a coluna, seu Orlando, grave, me chamou
para uma conversa e disse que não era só eu, todo o jornal estava sob
vigilância diária e nenhuma palavra seria publicada sem censura prévia”.
O episódio marcou o
comportamento e o trabalho da jornalista Clara Angélica. Ela continuou fazendo
a coluna e militando politicamente. Clara abriu mais espaços para temas da
cultura nos seus textos, disfarçando sob a divulgação cultural temas que diziam
respeito a política. Também voltou suas atenções para a crônica de costumes e
hábitos, dando maior cobertura à música e a movimentos da contracultura, como
os hippies.
Ainda em 1969,
conheceu um norte-americano que estava trabalhando em Aracaju e um ano depois,
casada, partiu com ele para os Estados Unidos da América, onde passou a viver e
foi mãe de dois filhos. Sua última coluna foi assinada no dia 26 de agosto de
1970, dois anos e sete meses depois da sua estreia.
*Jornalista, professor, doutor em
Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia
Sergipana de Educação.
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