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COISAS DE HOMEM, COISAS DE MULHER: ANOTAÇÕES SOBRE A PROFISSÃO DOCENTE EM ARACAJU

                                              Restaurante A Caverna


 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Em 1982 eu estava muito feliz. Estava saindo de Aracaju para ser aluno do Mestrado em Educação da Pontifícia Universidade Católica – PUC de São Paulo. Numa noite de junho, convidei o Senhor Antônio Ferreira do Nascimento, meu pai, para ir comigo fazer algo que apreciávamos: degustar uma sopa mão de vaca e tomar uma cerveja no restaurante A Caverna, no bairro Santo Antônio.

À época, meu pai tinha o desejo e a esperança de que seu filho pelos caminhos da carreira jurídica. Eu, todavia, já decidira mergulhar nos meandros da Política Educacional, da História, da Filosofia, da Sociologia. Enfim, a carreira docente era a minha opção.

Depois de ouvir que eu viajaria dentro de 15 dias, ele se voltou para mim e perguntou com ar solene: “quando você voltar desses estudos, vai ser assim um delegado de polícia, um promotor, um juiz, um procurador?”. Respondi na lata: não, meu pai. Vou tentar ser aprovado num concurso para professor da Universidade Federal de Sergipe. Ele me olhou, segurou em meu braço, não escondeu a frustração, me fitou nos olhos e disse: “Oh, Rapaz! Se pelo menos fosse uma profissão de homem”.  

Do alto da sua condição de mestre de obras e de homem curtido pela vida, meu pai desejava ver a ascensão social e o sucesso profissional e econômico do seu filho varão mais velho. E reproduzia um imaginário muito forte e muito presente em todo o Brasil no que diz respeito a diferentes representações da profissão docente.  

Com a implantação do Atheneu Sergipense, no século XIX, foi criado também um grupo de elite intelectual e econômica entre os docentes da cidade de Aracaju. Uma elite que foi exclusivamente masculina até a metade do século XX, quando Maria Thétis Nunes foi aprovada em um concurso para catedrática e quebrou o tabu.

A partir de 1877 a remuneração dos professores do estabelecimento de ensino foi estabelecida em um conto e quinhentos mil réis, o que era à época uma remuneração muito elevada, compatível com o padrão dos melhores empregos públicos da Província de Sergipe.

É inegável, no processo de organização do Atheneu, a influência exercida pelo bacharel e professor Manoel Luiz de Azevedo e Araújo. Ele foi um importante intelectual e político que dirigia a Instrução Pública quando da criação do colégio que completou, em 2020, 150 anos de fundado. Manoel Luiz lutou pela remuneração diferenciada dos lentes do Atheneu.

O tratamento dispensado aos lentes do Atheneu, contudo, não impediu que as relações do governo com os trabalhadores no ensino, fossem ou não docentes, continuassem razoavelmente conflituosas. As demandas entre os funcionários públicos das instituições escolares e os governantes da Província terminavam invariavelmente administradas pelos magistrados ou pelo parlamento.

Funcionários eram exonerados pelos governantes sem que recebessem o que lhes era devido. Em 1879, Pedro Batista Junqueira, ajudante do arquivo do Atheneu viu aprovada na Assembleia Provincial uma Resolução mandando que o presidente da Província lhe pagasse os créditos aos quais tinha direito desde o dia da sua exoneração como porteiro daquele estabelecimento de ensino.

Idêntica, no ano seguinte, fora a situação do professor Ignácio de Souza Valladão, que também somente veio a receber o pagamento pelos seus serviços como secretário das Escolas Normais, referentes ao período de primeiro de junho de 1878 a primeiro de abril de 1879, por determinação de ato parlamentar.

Nomear professores sem concurso era um hábito que ajudava os governantes no resgate de compromissos políticos com amigos e correligionários. Muitas vezes a falta dos concursos levou o parlamento provincial a tornar sem efeito o provimento de cargos de professor, mesmo no mais importante dos estabelecimentos de ensino da Província – o Atheneu.

No dia 11 de maio de 1875, a Resolução 1031 anulou o ato do presidente da Província pelo qual foram nomeados, sem concurso, os lentes das cadeiras de História e Geometria do Atheneu. A mesma Resolução determinava a abertura de concurso para as referidas cadeiras.

Na Escola Normal, o acesso ao quadro docente se dava através de concurso público. Para se inscrever no concurso de catedrático da Escola Normal era necessário preencher pelo menos uma das seguintes condições: ser normalista, professor primário vitalício, professor secundário ou ter exercido o magistério secundário durante algum tempo. As provas do concurso começavam sempre às dez horas da manhã. Todavia, a remuneração era menor que aquela correspondente ao trabalho no Atheneu.

Uma fala do presidente do Estado, Guilherme Campos, encaminhada à Assembleia Legislativa no ano de 1908, esclarece, de certo modo, o entusiasmo de alguns governantes para com a formação de professoras. Ele diz sem meias palavras que para o Estado era preferível garantir as mulheres no magistério público, por ser uma medida mais econômica, uma vez que os vencimentos pagos a uma professora na época não satisfaziam a um professor.

Nesta Mensagem que encaminhou à Assembleia Legislativa em 1908, diz Guilherme Campos: “Sem querer, como outros preconizar os dotes que a mulher tem para ser mestra, acho justificável a preferência que se lhe dá: porque o Estado não dispõe de grandes recursos, e a educação das crianças por ela é um meio mais econômico, porquanto ela se contenta com exíguos vencimentos que não poderiam satisfazer um professor” (p. 7).

Segundo a pesquisadora Anamaria Gonçalves Bueno de Freitas, em seu livro VESTIDAS DE AZUL E BRANCO, “aparecem nessa Mensagem Presidencial aspectos do trabalho feminino socialmente construídos. Em primeiro lugar, o salário da professora, apesar de ser considerado exíguo e garantir economia para o Estado, não seria satisfatório para o professor. Nesse caso, o trabalho feminino é mal remunerado, sendo que o salário da professora provavelmente poderia ser complementado pela renda do pai ou do marido” (p. 154).

José Rodrigues da Costa Dória foi um dos poucos governantes de Sergipe a assumir explicitamente a necessidade de masculinização do magistério primário. Entendia que as mulheres deveriam continuar se dedicando às crianças menores e que os homens possuem qualidades superiores para educar os meninos mais velhos.

A sua Mensagem à Assembleia Legislativa do ano de 1911, a firma: “A limitação constitucional das cadeiras do ensino primário às normalistas formadas pela Escola Normal, não resolveu a questão da habilitação, pois de modo algum esse título tem sido uma garantia de competência, como já tive ocasião de dizer. Com essa limitação concorreu a faculdade conferida pelo Regulamento ao Presidente do Estado, de poder escolher para as cadeiras do sexo masculino professoras, sem a preferência dos professores, para afastar os homens do ensino, convido rechama-los, pois, se para lidar com as crianças em idade escolar mais baixa as mulheres são incontestavelmente superiores aos homens, não acontece assim quando se trata de meninos da idade máxima do regulamento, exigindo disciplina mais enérgica e menos condescendência” (p. 50).

Outra vez é o livro VESTIDAS DE AZUL E BRANCO, de Anamaria Gonçalves Bueno de Freitas uma importante fonte. Segundo a autora, de acordo com o plano do presidente Rodrigues Dória, “à mulher caberia a instrução de classes mistas com crianças de até 8 anos. Alguns anos mais tarde a faixa etária foi ampliada para 10 anos” (p. 160). Ele via nas mulheres qualidades específicas para o trabalho com crianças pequenas, provavelmente vinculadas à perspectiva da maternidade.

Rodrigues Dória insistia, contudo, quanto a necessidade de professores do sexo masculino como garantia de maior disciplina e rigor. Entretanto, os baixos salários pagos às professoras primárias não atraíram os homens e a profissão se tornou cada vez mais feminina.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

 

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