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JORGE CARVALHO E O MATRIARCADO

                                              José Lima Santana



Entusiasmado, republico a crítica de José Lima Santana ao meu livro O CARVALHO. José Lima é advogado, padre e professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe. Sou grato pela sua leitura acurada dos meus textos em O CARVALHO.

José Lima Santana é cronista e ensaísta do primeiro time, ao lado de outros grandes nomes de sergipanos dedicados ao gênero, como Vladmir de Souza Carvalho, Murilo Melins, Anderson Nascimento, Antônio Carlos Sobral Sousa, Antônio Samarone de Santana, Lúcio Antônio do Prado Dias, Ana Maria Fonseca Medina e José Rollemberg Leite Neto, citando apenas os vivos.

Só posso prometer que continuarei observando bons textos e procurando aprender cada vez mais. Muito grato.

 

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JORGE CARVALHO E O MATRIARCADO

José Lima Santana

De “A Cultura Ocultada” às “Memórias da Resistência”, eu venho acompanhado a trajetória literária de Jorge Carvalho do Nascimento, tendo, inclusive, a oportunidade de escrever a apresentação do livro “FÉ“, no qual ele reúne diversas fotografias de cunho religioso. Um trabalho muito bonito que revela o fotógrafo amador em busca do aprimoramento.

Agora, ele veio com “O Carvalho”, estreando na seara da prosa. O acadêmico, autor de consagrada e vasta obra voltada, sobretudo, para a educação, deu de bater asas para plagas ainda por ele não frequentadas. Saiu-se bem? Ao menos na minha tosca visão, é o que veremos na sequência.

Jorge Carvalho faz arte literária a partir de realidades vividas ou sentidas. Como diz Nelly Novaes Coelho, a “arte é na realidade, em suas diferentes manifestações, o fenômeno que descobre o mundo à Humanidade” (Literatura & Linguagem. 4 ed. São Paulo: Edições Quíron, 1986, p. 30).

Jorge traz alguns dos seus mundos para os leitores, através de crônicas/memórias. Já se disse que as normas jurídicas tiveram como protótipo as regras domésticas, ainda nos tempos das cavernas, ditadas pelas mulheres, as matriarcas. Delas, emanaram, então, as normas jurídicas costumeiras, e, depois, escritas, como as conhecemos.

Já se disse. Duvidar, eu não duvido. Jorge Carvalho, talvez, também não. Vai-se saber. Aliás, Jorge, duas vezes casado, é pai e avô. Dele, por ora, descendem três mulheres, duas filhas e uma neta. Pode-se dizer que ele é “femeiro”. Não teria ele tomado lições com o velho Abílio, em Dores, que ensinava aos recém-casados como fazer meninos ou meninas. Dizia o velho fazendeiro que se o cabra, na hora do vem-cá-vamos-ver, fungasse no lado direito do cangote da sujeita, nasceria menina. Se fungasse no lado esquerdo, nasceria menino.

A verdade é que Jorge adentrou na carreira de beletrista. Na prosa, com crônicas e contos, às vezes não se precisando bem onde se misturam ou se separam. Não importa. Isso até é muito bom. É estilo. O que importa mesmo é que o autor, já passado da flor da idade, faz desabrochar, como uma flor do deserto, o prosador. Com pena ou tecla suave, meticulosa, atrevida, por vezes, esquadrinhando o doméstico e o social. Metido no mar de calmaria ou de procelas do mundo matriarcal. Ali o menino cresceu, entre sabores – imensos – e dissabores – nem tanto –, como sói acontecer com qualquer ser de calças, curtas ou compridas, cercado pelo farfalhar de saias e vestidos.

O mundo das matriarcas é quase mítico. Envolvente. Surpreendente. Nesse caso, de outras três mulheres: Petrina, Terezinha e Ivanda. Todas da mesma cepa: do Carvalho. Bem. Outro não poderia mesmo ser o título do recente livro de Jorge Carvalho, o mais bem posto galho de tão vistosa árvore. Os vinte e quatro textos que compõem o livro são de fácil e fluida leitura. Lê-se o primeiro e já se quer ler o último. É quase um romance desmontável em que cada texto funcionaria como um capítulo.

O real se “desrealiza” na obra de Jorge? Segundo Roger Samuel, na “literatura, o que é real é definido a partir de uma desrealização que a obra-de-arte faz” (Manual de Teoria Literária. 6 ed. Petrópolis (RJ): Editora Vozes, 1984, p. 15). O autor faz o leitor passear pelos cantos de sua casa, para bisbilhotar o modo de vida da família pequeno-burguesa, que vai fruindo, a cada tempo, as delícias da vida que se moderniza na cor da geladeira ou nas imagens distorcidas do televisor, tudo isso luxo de poucos, na rua ou no bairro. Dentre, obviamente, outros luxos domésticos ou sociais.

O Cine Palace, “o palácio dos grandes espetáculos”, como dizia o jingle difundido nas emissoras de rádio, é um luxo social de primeiríssima grandeza. A feira farta e bem discriminada, feita ali no mercado, é um luxo de narrativa literária. É luxo sobre luxo. Luxo maior não pode haver do que a conservação de bons amigos. Uma amizade duradoura é um tesouro a ser guardado no mais recôndito do peito. Porém, uma amizade tão profunda nem sempre provém de outro ser humano ou de um cão, por exemplo. Ela pode estar ancorada no alumínio de um cuscuzeiro. Companheiro de viagem. Até para a terra dos teutônicos. Terra da língua mais gutural, da boa filosofia, às vezes da falta de um bom banho (não é mesmo, Jorge?). Não relativamente ao nosso autor, bem entendido. É bom que se esclareça, antes que o pensamento anoiteça nalguma cabeça. O autor sabe do que falo. Um cuscuzeiro. Amigo inseparável até o dia, que se espera longínquo, do encontro com o crematório. Amizade é amizade. Um cuscuzeiro pode ser um amigão. Que nunca se diga o contrário.

As composições de Jorge Carvalho dão o tom de sua arte literária, para bem ilustrar o pensamento de Mikhail Bakhtin: “Também pode-se definir a composição como o conjunto dos fatores da impressão artística” (Questões de Literatura e de Estética – A Teoria do Romance. Tradução de Aurora Fornani Bernardini et alli. São Paulo: Editora UNESP/Hucitec, 1988, p. 22). Elas rastejam de forma abjeta. São terríveis. O veneno. A língua bifurcada, temida. São ligeiras, quando lhes convém. Todavia, podem ser preguiçosas. Sim, elas mesmas, as serpentes. Na boca de um senhor de baraço e cutelo, porém, a pobre mulher era chamada de serpente preguiçosa. Que falta de modos! Que desmantelo das seiscentas, era aquele tal Tonico, fazendeirão bem arranchado e bem montado em teúdas e manteúdas. Pobre Genoveva, que me fez lembrar aquela outra de igual graça, cantada em cordel (“Os Martírios de Genoveva”, de Leandro Gomes de Barros), que eu, menino, ouvi mil e uma vezes, na voz pouco ritmada do meu pai. Eis um conto arretado, “seu” Jorge. Tinindo de bom. Igualzinho a uma fritada de maturi ou a um doce em calda de cajuís.

E “O Júri”? Nos meus tempos de advocacia, fiz muitos. O primeiro foi inesquecível. Ganhei folgado. Morte por faca e revólver. Mas, não tive nenhum coronel Joãozinho Maia a pedir pelo meu constituinte, nome bonito que o advogado dá ao réu. Pois fique sabendo, Jorge Carvalho, que depois de ler o seu conto, deu-me uma vontade danada de voltar ao Tribunal do Júri. Agora, não pega bem. Sou padre. Nem em aclarada legítima defesa. Ficarei na vontade.

E ficarei por aqui. Li tudo. De tudo gostei. Seja bem-vindo, Jorge Carvalho, ao seu novo clube, o dos prosadores.

 

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