Jorge
Carvalho do Nascimento*
O
baixinho Brasilino Silveira tinha 1,47 de altura e corpo franzino. O deboche da
natureza colocou sobre o seu atarracado pescoço curto e fino uma cabeça cuja
circunferência era de 76 centímetros. Para que a aberração se torne
compreensível, os estudiosos da matéria indicam que a circunferência tida como normal
de uma cabeça humana, a depender da idade e da estatura do adulto, oscila entre
54 e 65 centímetros.
Na
escola, em tempos nos quais todos praticavam o bullying sem qualquer censura
ou reprovação social, o apelido que ele recebeu foi óbvio: Brasilino Cabeção. E
o pior, em tamanha caixa craniana as ideias visivelmente não prosperavam. Cabeção
era apoucado, como disse uma professora ao seu pai, comerciante próspero do
ramo de tecidos na feira de Caruaru.
Aos
empurrões, com reprovações no caminho, Brasilino concluiu o ginásio e o curso
científico no início dos anos 50 do século XX em Salvador, para onde se
transferira e fora viver na casa do tio Alfredo. O tio Alfredo, diferente do
sobrinho, era um homem de muito brilho e lustro intelectual, professor de
Medicina Legal na Faculdade da Universidade Federal da Bahia.
À
época em que os exames do concurso vestibular eram feitos por provas escritas e
orais, o tio Alfredo convenceu o seu limitado sobrinho a se inscrever no
concurso de ingresso da Faculdade de Medicina. Disse-lhe: “você tem muitas
chances de ser aprovado. Eu estarei na banca”. Quem se atreveria a reprovar o
sobrinho do professor Alfredo, festejado médico da tradicional escola baiana de
legistas? Tradição que desde o século XIX formou estrelas da Medicina Legal como
o ilustre Nina Rodrigues que fez sucesso e foi reconhecido na Universidade de
Paris, onde morreu em 1906.
O
fato é que Brasilino Cabeção, seis anos depois ostentava o seu suado diploma de
médico. Orgulhoso foi a Caruaru festejar com a família o recebimento do canudo,
mas logo retornou a Salvador. O tio Alfredo, homem de prestígio político na cidade,
buscou os seus correligionários da UDN que exerciam o governo estadual e ainda
no mês de janeiro de 1959, Cabeção foi cumprir o seu primeiro plantão como bom
discípulo do Deus Esculápio no importante Instituto Médico Legal Nina
Rodrigues.
Firmou
o seu primeiro laudo, esclarecendo que o cadáver morrera por afogamento nas
águas da Baía de Todos os Santos. Os colegas ficaram perplexos e “promoveram”
Cabeção a chefe de uma coordenadoria burocrática encarregada de arquivar
prontuários. Lá, ele ficou feliz até se aposentar 30 anos depois.
O
que assustou os médicos do Nina Rodrigues no laudo de Brasilino Cabeção? Ele
não leu o relatório que recebeu da polícia juntamente com o cadáver. Os colegas
leram. Ficaram sabendo que Chico Guela Grossa era um bêbado inchadinho que vivia
no povoado de Caixa Prego, na Ilha de Itaparica. Era ele o cadáver que
repousava na mesa de mármore, defronte do assustado Brasilino Cabeção.
Chico
Guela Grossa passou três semanas desaparecido em Caixa Prego. Foi encontrado 23
dias depois em uma casa abandonada na zona rural, se é que ela havia algum
arremedo de zona urbana ali em 1959. Nas costas de Chico Guela Grossa, cinco
perfurações profundas. Os padioleiros levaram o cadáver já putrefato até o
cais. Nove da noite, só havia uma canoa de passageiros com motor a diesel para
fazer a travessia de Itaparica a Salvador.
O
ruido do motor daquele tipo de embarcação faz com que em quase toda a região
Nordeste ela seja conhecida como TÓ-TÓ-TÓ (o funcionamento do motor produz um
som característico tó-tó-tó-tó-tó-tó-tó-tó-tó-tó). É muito popular na travessia
Itaparica-Salvador e vice-versa.
A
TÓ-TÓ-TÓ Gaivota Azul era uma muito bonita e bem cuidada pelo seu proprietário
Maneca Piloto, que garantia o sustento da família transportando passageiros de
um lado a outro. Zeloso, o homem empombou: este defunto fedorento não viaja na
minha TÓ-TÓ-TÓ.
Querendo
se livrar do problema, os funcionários do Nina Rodrigues acataram a sugestão de
Maneca Piloto. Colocaram o “presunto” na padiola de alumínio e amaram bem o
corpo com várias cordas. A padiola foi bem fixada na popa da embarcação, posto
que todos sabiam que alumínio flutua. Não calcularam os efeitos da marola
provocada pela velocidade do barco e pelas ondas da Baía de Todos os Santos.
O
fato é que foram 90 minutos de travessia sem que ninguém se desse conta que a
padiola de alumínio virou, submergiu, emergiu novamente, virou de novo. Todos
só pensavam em chegar. Somente no cais de Salvador se deram conta do
encharcamento do cadáver. Foi assim que o corpo chegou às mãos do Dr. Brasilino
Cabeção.
Emocionado
e nervoso ao examinar o seu primeiro defunto naquela madrugada, Brasilino
Cabeção viu o cadáver de Chico Guela Grossa em Decúbito Dorsal e não vacilou.
Fez um corte do pescoço ao púbis. Analisou o abdome, a caixa torácica e o
crânio. Não quis ver o relatório da preparação do corpo feito pelos técnicos do
Instituto. Não colocou o corpo em decúbito ventral. Fechou o corpo.
Nervosismo
e conhecimentos limitados em Medicina Legal foram responsáveis pela produção do
laudo. “Pela quantidade de água salgada contida nas narinas e nas orelhas,
concluo: afogamento nas águas da Baía de Todos os Santos”.
*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
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