Jorge
Carvalho do Nascimento*
Depois
do choque cultural do primeiro momento, a gente acostuma com a correria que a
vida na cidade de São Paulo impõe e constrói amizades muito sólidas. Dentre os
amigos que fiz, considero inesquecível o querido Soneca ou José Alberto Botelho
Prado. Foi meu colega em um curso sobre Max Weber, durante 60 dias, na Escola
de Sociologia e Política.
Sinpaticíssimo,
Soneca era esquálido nos seus mais de um metro e 90 centímetros de altura.
Cabelos ruivos compridos, mestre em Filosofia, trabalhava como professor de
Estética na Faculdade Anhanguera, no bairro de Santana, zona norte. Dentre os
estranhamentos que causava, o hábito de trocar de roupa todos os dias e vestir
um modelo igual ao do dia anterior.
Todo
o guarda-roupas do professor era formado por pares de tênis na cor marrom que
ele usava sem meias; calças de sarja na cor bege, com bolsos embutidos à frente
e dois bolsos atrás; camisas de cambraia quadriculada, na cor azul, mangas
compridas e dois bolsos com tampa. Os botões da camisa fechados até o pescoço.
Todas
as noites, de segunda a quinta-feira, Soneca estava dando conta das ocupações
docentes. Não era só isto. Nos cinco dias úteis da semana, manhã e tarde,
dirigia o Departamento de Publicações do Instituto de Medicina Social e
Criminologia – IMESC, ligado à Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo.
Era
para ele uma jornada de trabalho estafante. E tinha as responsabilidades
domésticas dadas pelo casamento com a advogada Arlene e a atenção aos três filhos:
uma menina e dois meninos mais novos, entre os quatro e os nove anos de idade. Desde
que fizemos o curso na Escola de Sociologia e Política adquirimos o hábito de
frequentar o Bar do Leo às sextas-feiras, no final da tarde. A farra começava
as cinco e se esticava até 23 horas, meia noite, uma da madrugada.
O
Bar do Leo frequentado por nós era tradicional e ficava no bairro de Santa
Efigênia, rua Aurora, funcionando desde 1940. A decoração remetia aos bares
alemães da Baviera e o forte era a variedade de chope e cerveja que oferecia. O
colarinho da bebida era alto e cremoso, como eu nunca havia provado em nenhum
outro lugar, até então.
Os
petiscos de bolinho de carne bem passado que a gente comia lambuzado em
maionese, molho inglês, ketchup e mostarda eram uma perdição. Sem falar nos deliciosos
canapés em pão preto, cortado em pequenos quadrados, bem macio com linguiça
tipo Blumenau. Éramos viciados.
À
mesa, a roda dos amigos de sempre, todos comandados pelo humor irônico e mordaz
do Soneca. Estávamos sempre acompanhados do Professor Silva (autor de livros
didáticos de História), Maranhão (um economista barbudo que trabalhava no
gabinete do deputado Alberto Goldman), Suzana (uma bióloga do Hospital das
Clínicas) e Castilho (um velho procurador federal aposentado).
Numa
sexta-feira do mês de outubro um angustiado Soneca nos contou que passara no
bar apenas para informar que ficaria uma temporada ausente. Sentira umas
tonturas e depois de alguns exames fora diagnosticado com anemia profunda. O
médico prescrevera uma bateria de medicamentos, recomendara uma dieta rica e
ferro e ao longo do dia a orientação de lanchar seis bananas d’água.
Na
segunda pela manhã Soneca saiu da sua casa no bairro da Saúde e tomou o metrô
com destino a Estação República. Em cada um dos dois bolsos da camisa, uma
banana d’água. Em cada um dos dois bolsos dianteiros da calça, mais duas bananas
d’água. Em cada um dos dois bolsos traseiros da calça, a quinta e a sexta
bananas d’água.
Ao
embarcar no trem percebeu que o vagão ao qual teve acesso já tinha uma lotação
significativa, com muitas pessoas em pé. Até a praça da Sé, onde desembarcaria
e faria conexão com a linha que o levaria à Praça da República, eram 10
estações. Pensou imediatamente: este trem vai encher mais e vai amassar minhas
bananas.
Para
se proteger e cuidar das bananas, procurou uma das laterais do vagão. Com a mão
esquerda segurou na barra de proteção que corre pelo teto do trem. Com a mão
direita segurou a volumosa banana d’água que transportava no bolso traseiro da
calça, a fim de que os apertos e solavancos da viagem não estragassem a fruta.
Passou
pelas estações Praça da Árvore, Santa Cruz, Vila Mariana, Ana Rosa e Paraíso. A
cada parada, mais gente espremia os passageiros que já se encontravam no vagão.
E ainda faltava a metade do trajeto. Mas, Soneca estava tranquilo. Sua mão
segurava com firmeza a fruta destinada ao lanche.
O
trem seguiu adiante. Mais cinco estações: Vergueiro, São Joaquim, Liberdade e
finalmente começou a se aproximar da Sé, onde a maior parte dos passageiros
desembarcaria. Soneca iniciou os preparativos para o desembarque, quando sentiu
um dedo indicador pesado começou a cutucar seu ombro.
Diante
da admoestação recebida da parte de um passageiro que ele sequer poderia fazer
ideia de quem pudesse ser, girou um pouco o pescoço para o lado. Seu olhar se
fixou no de um homem corpulento, desses que possuem de altura quase as mesmas
medidas da largura do tórax. Ouviu dele uma voz tonitruante: “amigo, já pode soltar.
Eu vou desembarcar nesta estação”. Soneca não entendeu nada. Soltou a banana e
coçou a cabeça. O homem sumiu. O professor voltou a mão outra vez para o bolso traseiro
da calça e percebeu que a banana estava completamente amassada, imprestável ao
consumo.
*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
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