Pular para o conteúdo principal

LIÇÕES DE CIVILIDADE: O COMPÊNDIO DOS PADRES SALESIANOS – III


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Durante a primeira metade do século XX, civilizar significava também proteger a sociedade contra a desordem, capacitando e ocupando os desocupados e ociosos, os então chamados "desfavorecidos da fortuna", de modo a propagar os valores atribuídos à sociedade industrial, associando o conceito de civilização aos ideais do progresso e da democracia (CUNHA, Luiz Antônio Rodrigues da. "O ensino industrial-manufatureiro no Brasil". In: Revista Brasileira de Educação. São Paulo, nº.14, mai/ago, 2000. p. 94).

Todos estes discursos levavam em consideração o fato de que como espaço que reúne um grande número de pessoas e que tem objetivos civilizatórios de transmissão dos padrões culturais em circulação, a escola inclui dentre os seus procedimentos disciplinadores o ensino da renúncia à violência física, estabelecendo convenções destinadas a controlar a conduta, modelar os afetos e regular as maneiras.

Ao cumprir tal responsabilidade, a escola pensava não apenas em alunos oriundos dos grupos sociais mais pobres. O sentido civilizatório estava presente nas diversas escolas, fossem elas destinadas ao atendimento de alunos mais pobres ou aos filhos das famílias mais abastadas.

Os primeiros manuais de comportamento mais assemelhados com aqueles que conhecemos atualmente dos quais se tem notícia foram redigidos por religiosos cultos, em Latim, desde o século XII. Normas que por volta dos séculos XIV e XV eram aprendidas de cor, como Tischzuchten, ou hábitos à mesa.

Esse era um meio de condicionamento muito importante, principalmente na sociedade medieval, em face da escassez de livros. Os preceitos eram transformados em rima para que fossem decorados com maior facilidade quanto ao que se devia fazer ou não fazer à mesa.

Os Tischzuchten não eram livros de boas maneiras à moda dos trabalhos produzidos hoje por autores individuais, mas sim a reunião de fragmentos de várias tradições orais, reflexo dos costumes coletivos que descreviam a tipicidade social. Esses manuais se multiplicariam na Europa, nos séculos seguintes, e se difundiriam de maneira muito acentuada na América, durante os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, inclusive no Brasil.

Não causa qualquer estranheza, portanto, que, durante a primeira metade do século XX tenham sido numerosos os manuais de civilidade que circularam no Brasil, boa parte deles produzida para atender a necessidades escolares. Foi com este intuito que os padres salesianos publicaram, no início da década de 20, o seu Compêndio de Civilidade, para uso das famílias e dos institutos educativos. Em 1930, o livro estava circulando em sua sétima edição, com 42 mil exemplares.

O trabalho era uma das principais publicações da coleção P.S.S. Através dessa coleção, a Livraria Salesiana Editora, que funcionava em São Paulo, distribuía em todo o país 28 títulos de livros escolares. O Compêndio continha 115 páginas, no formato 12 X 18,5 centímetros.  

O trabalho estava dividido em 35 capítulos, uma "página negra" e um apêndice, além de conter um prefácio dos editores. Os cinco primeiros capítulos eram dedicados aos "Deveres", enquanto os 30 capítulos restantes eram reservados aos "Procedimentos", dos quais o último tratava exclusivamente das meninas.

A "página negra" trazia uma lista das grosserias mais comuns, enquanto o apêndice ensinava a escrever cartas. Entre as décadas de 20 e 60 do século XX, o Compêndio foi adotado em escolas salesianas e em outras instituições de ensino, principalmente católicas, posto que destinado quase exclusivamente "a alunos de colégio e aos jovens filhos de família" (p. 3).

O propósito da publicação era muito claro, buscando suprir "a falta de um compêndio de civilidade suficientemente desenvolvido e adaptado às famílias e colégios católicos, no qual os preceitos fossem acompanhados de considerações morais, formando assim um pequeno tratado de boa educação" (p. 3).

Portanto, a pretensão era a de aliar aos princípios religiosos mecanismos de autocontrole dos impulsos que se consolidassem cada vez mais, reduzindo e internalizando os conflitos entre os impulsos e as tendências socialmente pouco admissíveis e aquilo que é desejado de cada um.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

TRIBUTO A LUCINDA PEIXOTO

      Jorge Carvalho do Nascimento*     Acabei de tomar conhecimento da morte da empresária Maria Lucinda de Almeida Peixoto, ocorrido hoje na cidade de Penedo, Estado de Alagoas. Lucinda era certamente a principal herdeira dos negócios da próspera família Peixoto Gonçalves, empresários que ao longo do século XX constituíram a mais importante e mais rica família da região do Baixo Rio São Francisco, consideradas as duas margens – a de Alagoas e a de Sergipe. Tive a oportunidade de conhecer Lucinda Peixoto no final do ano de 2009, quando iniciei uma pesquisa sobre os negócios da família Peixoto Gonçalves, a convite do seu genro, José Carlos Dalles, um dos principais executivos com responsabilidade sobre a gestão das atividades econômicas da família. Em maio de 2010, fiz uma série de entrevistas e mantive várias conversas com Dona Lucinda, como os penedenses e os seus amigos costumavam tratá-la. Fiquei impressionado com a sua memória que o tempo não conseguira embotar. Do m

CONTRIBUIÇÃO ASSISTENCIAL: REGULAMENTO OU CAOS

                                                    Nilson Socorro       Nilson Socorro*     Nestes tempos bicudos de exacerbação das divergências, de intolerância e de fakes news em profusão, o mundo do trabalho, em especial, o movimento sindical, tem sido permanentemente agitado pela discussão, confusão e desinformação sobre o tema da contribuição sindical. O debate deveria contribuir para a construção de soluções, necessárias, em decorrência da fragilidade das finanças dos sindicatos, golpeadas pela reforma trabalhista de 2017 que abruptamente estabeleceu o fim da obrigatoriedade do imposto sindical. Mas, ao contrário, tem se prestado mais para amontoar lenha na fogueira onde ardem as entidades sindicais profissionais e econômicas que ainda resistem. A Consolidação das Leis do Trabalho trata a contribuição sindical em diversos artigos, assim como, a Constituição Federal. Pelo estabelecido na legislação, são três as espécies de contribuições: a contribuição sindical ou imposto sindic

TRIBUTO A THAIS BEZERRA

      Jorge Carvalho do Nascimento*     Nasci no dia 28 de agosto. Passados 22 anos após o dia em que eu nasci, a mais importante colunista social de toda a história da mídia em Sergipe publicou a sua primeira coluna, GENTE JOVEM, no jornal GAZETA DE SERGIPE, a convite do nosso amigo comum Jorge Lins e sob a orientação do jornalista Ivan Valença, então editor daquele importante periódico impresso. Hoje estou aqui para homenagear a memória de Thais Bezerra. A partir do seu trabalho, dediquei alguns anos da minha vida à pesquisa e me debrucei a estudar o fenômeno da coluna social em Sergipe, inspirado pelo meu olhar curioso e pelas observações que sempre fiz a respeito do trabalho da jornalista inspiradora que ela foi.       O estudo, inicialmente dedicado ao trabalho de Thais Bezerra se ampliou, e no início do ano de 2023, resultou na publicação do livro MEMÓRIAS DO JORNALISMO E DA COLUNA SOCIAL, pela Editora Criação.   Thais Bezerra começou a trabalhar aos 17 anos de