Jorge Carvalho do Nascimento*
O Compêndio tomava como ponto de partida a
ideia de que "a civilidade nada mais é do que uma parte da caridade -
virtude cristã basilar na doutrina católica - e que, por conseguinte, não
podemos ser bons católicos se não praticarmos a mais Cortez urbanidade"
(p. 3).
Essa associação entre a civilidade e as virtudes
cristãs era uma preocupação moral que a Igreja Católica esboçava na Europa
desde o século VI. Inicialmente, inclusive, em relação aos próprios membros do
clero, quanto a determinados hábitos sociais, como o dos quartos de dormir.
O quarto de dormir, que é na sociedade atual um dos
mais importantes dentre os espaços privados que dizem respeito à vida íntima do
indivíduo, nem sempre teve tal característica. Na sociedade medieval era comum
receber visitas nos quartos de dormir e as camas eram símbolo de prestígio
social, traduzido pela opulência estética.
Muitas pessoas dormiam à noite no mesmo quarto e na
classe alta era comum que os serviçais dormissem com o seu senhor, enquanto no
quarto da dona da casa dormiam suas damas de companhia. Nos extratos inferiores
da sociedade, muitas pessoas - homens e mulheres, inclusive hóspedes - ocupavam
o mesmo quarto à noite. Alguns dormiam vestidos, outros inteiramente nus.
Os hábitos em relação ao modo de dormir faziam com
que as ordens monásticas impusessem regras que obrigavam seus integrantes a
dormirem completamente vestidos, enquanto nos espaços laicos da sociedade a
prática social era a de despir-se para dormir. Mas, num determinado momento,
mesmo as ordens religiosas afrouxaram tais regras.
A partir do século XII muitos monges beneditinos se
tornaram prósperos e poderosos, relaxaram o ascetismo e tiveram permissão para
dormir sem roupas, rompendo com normas que datavam do século VI e os obrigavam
a dormir completamente vestidos, inclusive com os cintos.
Não existiam roupas de dormir para religiosos, ou
mesmo para homens e mulheres da sociedade laica, na qual se suspeitava serem portadores
de alguma doença aqueles que não se despiam ao ir para a cama e passavam a
noite com a roupa de uso diário. A suspeita era de que estivessem ocultando o
corpo por alguma razão.
Essas relações entre religião e civilidade,
tradicionais na Igreja Católica, levavam, no início do século XX, o Compêndio
de Civilidade dos Salesianos a afirmar: "sendo, muito embora, verdade
que pessoas há extremamente corteses, sem, no entanto, praticarem o
catolicismo, podemos asseverar que a sua urbanidade é forçosamente falha e
superficial, porque não se inspira na caridade cristã e não atinge a sua força
e eficácia na escola dessa sublime virtude. (...) Um católico convicto e
praticante, que seja ao mesmo tempo o tipo do cavalheiro, é destinado a
tornar-se o ídolo da sociedade. Eis o ideal que com todas as veras desejamos
possam atingir os nossos jovens alunos" (p. 4).
O objetivo do Compêndio era o de ser, assim, uma
aula de civilidade, do mesmo modo que os manuais de civilidade para meninos
publicados desde o século XVI, a exemplo do trabalho de Erasmo de Roterdã, que
começou a circular em 1522, embora à época a Igreja Católica houvesse
considerado o livro de Erasmo uma leitura inadequada aos católicos.
O texto de Erasmo, publicado sob o título de Familiarum
Colloquiorum Formulae non Tantum ad Linguam Puerilem Expoliandam, Verum Etiam
ad Vitam Instituendam (Colóquios Familiares, Destinados Não Só a Aprimorar
a Língua dos Jovens, Mas Também a Educa-los Para a Vida), foi colocado no Index
Librorum Proibitorum e considerado ofensivo a instituições e ordens da
Igreja, sob a afirmação de que continha imoralidades.
Do ponto de vista da prática social geral, os
Colóquios de Erasmo não apresentam nenhuma estranheza quando confrontados à
realidade na qual foram produzidos. O texto, assim como muitos trabalhos
humanistas do período, apenas não se ajustava ao padrão de sociedade religiosa
defendido pela Igreja Católica Romana naquele momento, mas era o ponto de vista
das relações sociais seculares (NASCIMENTO, Jorge Carvalho do. "A Formação
do Homem Civilizado". In: Revista Educar-SE. Aracaju, Ano I, nº. 3,
março, 1997. p. 39).
Buscando ocupar uma posição de importância entre os
livros estudados nas escolas, o Compêndio de Civilidade publicado pelos
Salesianos brasileiros no início do século XX propunha que a sua aplicação
fosse entregue à responsabilidade dos professores mais hábeis, sugerindo a
metodologia de uso que via como mais adequada:
“Tais professores, em vez de fazerem conferências
ou preleções, devem explicar passo a passo o compêndio, fazer dele um como
catecismo cívico-moral, mandar decorar em resumo os preceitos gerais, acompanhar
a aula teórica com as lições práticas em que se façam movimentos e entabulem
diálogos, se manuseiem objetos etc. etc; e tudo isso repetido até se formar na
criança e no jovem o hábito de civilidade” (p. 4).
*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
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