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A MATA DO SAUIM


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Mesmo sabendo que a jornada era longa, Zé Pifane de Zé Viana resolveu ir a pé. Era noite de sexta-feira, estava em Estância e o saveiro Caminho de Estrelas tinha que levantar o ferro da âncora as 10 horas em ponto da manhã de sábado no porto de Espírito Santo com destino a Salvador.

A hora era determinada pela maré alta, o melhor momento para vencer a saída da barra dos rios Real e Piauí/Piauitinga, entre a Praia do Saco e o Mangue Seco. Zé Pifane era o taifeiro do Caminho de Estrelas. Dele dependiam a organização dos alojamentos e as refeições da embarcação.

Se ele não estivesse presente o saveiro não teria como zarpar. O fato de o cargueiro ser movido a velas e não a motor tornava a viagem até Salvador longa e cansativa, principalmente se houvesse a infelicidade de pegar um vento de proa, o que era recorrente na rota.

Os homens precisavam comer bem, ficar bem alimentados para aguentar o repuxo. Trabalho pesado de levantar e arriar velas, mudar a posição dos mastros, dosar as inclinações do saveiro, a boreste, a bombordo e novamente a estibordo. É difícil navegar a vela com segurança. O saveiro estava com os porões carregados com sacas de açúcar e o convés com uma carga de madeira.

Não era possível vacilar. Somente as sete da noite da sexta-feira Zé Pifane conseguira sair do cartório de Maneca de Heleninha, na Estância, mas estava feliz. Registrou a escritura de compra da propriedade de 30 tarefas que adquiriu das mãos do Mestre Pacífico, o ferreiro da vila do Espírito Santo.

Deu trabalho a Zé Pifane negociar com o ferreiro. O valor que o Mestre Pacífico queria cobrar pela propriedade representava em notas um volume de dinheiro maior que a protuberância das esferas que saltava aos olhos de todos, na região da braguilha em suas calças. Decorrência de uma hidrocele testicular bilateral nunca tratada. Mas, Zé Pifane regateou e conseguiu o preço desejado.

Disputou a compra do terreno com Amim de Maria de Nazaré, próspero negociante de coco de origem árabe, conhecido pela sua avareza. Aos olhos da comunidade local, ele tinha um pacto com o Belzebu, daí se dar tão bem nos negócios. Queria pagar ao Mestre Pacífico em 10 parcelas, mas tinha a fama de nem sempre honrar com seus compromissos de longo prazo.

Zé Pifane pagou à vista. Ao saber da venda da terra a Zé Pifane, Amim disse-lhe: “Você ainda vai ser castigado por ter me prejudicado neste negócio. E não é castigo aqui da terra”. Supersticioso, o comprador decidiu apressar o registro, em cartório, de transmissão da propriedade. Ao sair de Espírito Santo para Estância, na madrugada da quinta para sexta-feira, na barcaça Caiçara, Zé Pifane recebeu os parabéns do sogro Zé Viana, mas minimizou a importância da compra, dizendo que era só uma malhadinha.

Fingir que a conquista era pequena, apresentar modéstia, era o seu jeito de manifestar aquilo que fazia e o deixava orgulhoso. Naquela sexta-feira, saiu do cartório, guardou a escritura no matulão juntamente com o corte de seda que comprou para a confecção do vestido da mulher Maria Viana e da casimira que se destinava ao feitio de um terno novo para si. Eram os preparativos para a festa de Natal que se aproximava.

Do cartório, de onde saiu as sete da noite, foi até o Bar de Manelito de Maria Pequena. Tinha fome e havia perdido a hora do almoço. Como todo marinheiro, era bom garfo. Bateu um prato de arroz, feijão, farinha, dois bifes mal assados e dois ovos fritos. De sobremesa, uma banana d’água.

Chegou ao porto da Estância por volta das oito da noite. Recebeu uma péssima notícia. Somente na manhã seguinte haveria uma embarcação saindo em direção a Espírito Santo. O horário de partida do saveiro Caminho de Estrelas as 10 horas da manhã o atormentava e impedia de ficar ali aguardando. Não teve outra alternativa. Decidiu que iria a pé.

A caminhada seria de seis a sete horas. Dava para chegar em casa por volta das três da madrugada e ainda dormir antes da hora prevista para embarcar. Estava bem alimentado. No matulão tinha um cacho de bananas prata. Lá pelas duas da madrugada seria possível fazer um lanche.

No bambuzal às margens do rio Piauitinga cortou uma vara linheira de bambu com cerca de um metro. A vara e a faca tipo marinheiro que sempre carregava na cintura eram as armas que possuía para se proteger no trajeto. De Estância a Santa Luzia a caminhada foi tranquila.

Havia caminhado durante duas horas sob a noite de lua cheia que clareava os caminhos normalmente usados pelos carros de boi que transportavam a cana dos engenhos. Cruzou com uma viajante como ele, em sentido contrário ao seu, também andando a pé. Se cumprimentaram na paz.

Foi ultrapassado por um homem bem vestido, montado em um cavalo. Ia na mesma direção que ele e o saudou cordialmente. Atravessou algumas propriedades, mas só foi perturbado por um ou outro cachorro. Para se defender destes, a vara de bambu foi suficiente.

O maior problema do trajeto começava em Santa Luzia. Por volta das onze da noite entrou nas veredas da temida Mata do Sauim. Floresta cerrada, escura, impenetrável à luz da lua. Ali, tudo poderia acontecer. A fama da moradia de animais selvagens e hostis era o que menos o assustava.

Não tinha medo de onça suçuarana, jaguatirica, nem de gato maracajá. Zé Pifane também não temia as histórias que contavam sobre a mata como esconderijo de bandoleiros, salteadores de estrada e todo tipo de malfeitor que vagava pelos caminhos no início do século XX.

Homem temente a Deus, Zé Pifane não queria saber de encontros com o sobrenatural. Tinha medo de alma penada e do cramunhão. Católico fervoroso ouvira várias vezes o Padre Zeca falar dos perigos da blasfêmia das religiões de origem africana e dos males do Zé Pilintra, com quem jamais queria encontrar na Mata do Sauim. E o pior dos tipos, o labizone preto que habitava aquela floresta e sobre o qual circulavam as mais escabrosas histórias.

Nada a fazer. Pé na mata. Enquanto andava, ia sacando o seu estoque de orações. Pai Nosso e Salve Rainha eram as suas rezas preferidas. A primeira hora transcorreu na paz do senhor. O passo apertado, acelerado, só pensava em vencer a distância dos caminhos da floresta, de duas a três horas andando.

A partir da segunda hora, começou a sentir alguns calafrios e a ter a sensação de que estava sendo seguido. Apertou ainda mais o passo, acelerou a marcha. Estava ensopado de suor frio quando ouviu pela primeira vez uma voz lúgubre que ecoou por toda a mata escura: “Ele é caminhadorzinho, viu!”.

Virou-se para trás, não viu nada. Lembrou da praga de Amim. O pânico tomou conta de Zé Pifane. Passadas apressadas, quase correndo. Ouviu mais quatro vezes: “Ele é caminhadorzinho, viu!”. Ousou olhar novamente para trás. Viu o bicho preto peludo vindo em sua direção. Alto, olhos vermelhos quase faiscando, dentes alvos, enormes, duas presas laterais, unhas que eram verdadeiras garras.

Começou a correr tropeçou e caiu. Desmaiou. Acordou aos solavancos, sol entrando pelas frestas do telhado e da janela do quarto, sendo empurrado pelas mãos do sogro Zé Viana: “Acorda, Zé Pifane. Oito da manhã. O saveiro vai partir dentro de duas horas”.

 

 

*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

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