Jorge
Carvalho do Nascimento*
Carro
alugado, chaves na mão. Uma visita ao supermercado e um forte investimento em coisas
prioritárias para a sobrevivência humana. 12 garrafas de vinho tinto, meio
quilo de queijo gorgonzola, um sortido de pães do tipo Volkornbrot (aquele
preto, pesado, sem fermento, denso, com alguns grãos de trigo inteiros e sabor inesquecível)
e quatro litros de água mineral envasados em 20 garrafas de 200 ml cada uma.
Só
faltava a casa. Não custou caro comprar duas barracas individuais de camping.
Práticas, fáceis de montar, leves. Para cada uma das tendas foi adquirido um colchonete.
O critério da compra foi o preço. Era o modelo mais barato sempre o preferido.
O mesmo fundamento que orientou a compra dos lençóis. Agora, pé na estrada. Ou
melhor, na Autobahn, o fantástico sistema alemão de rodovias federais.
A
ideia era aproveitar os últimos 10 dias do mês de julho e os cinco primeiros
dias do mês de agosto circulando de carro por pequenas cidades do interior e
também por alguns centros urbanos relevante da República Federal da Alemanha.
Era um dos períodos de recesso das atividades de pesquisador que o bolsista
brasileiro desenvolvia na Johann Wolfgang Goethe Universität, em Frankfurt am
Main.
Havia
acertado a viagem com o seu amigo jornalista Luciano Correia. Este, se hospedara
no apartamento do amigo bolsista, na Beethovenstrasse 36, uma charmosa rua
arborizada do boêmio bairro de Westend, a 200 metros da reitoria da
Universidade e do edifício da histórica Escola de Frankfurt.
Partiram
numa quinta-feira, por volta das 10 da manhã, em direção a cidade de Trier. Ao
meio dia haviam vencido os 189 quilômetros que separavam os dois pontos. Foram
devagar, desfrutando da paisagem. Mesmo a Autobahn permitindo um percurso mais rápido,
algumas vezes preferiram as estradas mais antigas, passando por pequenos vilarejos
e margeando rios bucólicos e muito navegáveis da Alemanha como o Meno, o Reno e
o Mosela. De fato, conhecendo o interior alemão.
Nada
mais razoável em uma viagem de dois comunistas aposentados que uma visita a
Trier. A cidade ainda é uma espécie de Meca visitada por esquerdistas militantes
ou por aqueles que em algum momento da vida se entusiasmaram com as teses
defendias por Karl Marx em O Capital, A Miséria da Filosofia e outros textos. Enfim,
aqueles que receberam a influência da sua visão de mundo.
Trier
é uma das mais antigas dentre as cidades da Alemanha, edificada às margens do
rio Mosel, no Estado da Renânia. Fundada
no século I antes de Cristo, nos séculos III e IV, em diferentes momentos,
chegou a sediar o governo do Império Romano. Além dos monumentos romanos, um dos
pontos que recebe a maior quantidade de turistas na cidade é a Karl Marx Haus. A
casa na qual nasceu o importante filósofo alemão é hoje um movimentado museu
que atrai a visita de admiradores de Marx.
Depois
de uma tarde fazendo os passeios que a cidade oferece era a hora de se acomodar
e pensar no que fazer à noite. Parada no Camping Trier Mosel, barraca armada à
margem do rio. Uma nova volta pela cidade e uma relaxada em um bar na região da
Porta Negra, uma vistosa edificação romana que é o mais relevante ponto de
visitação local. Uma garrafa de vinho, uma massa, cansaço do primeiro dia de
viagem, hora de se recolher.
Cada
um em sua barraca, colchonete sobre o solo, corpo protegido pelo cobertor. Não
houve necessidade de muitos minutos deitados para que descobrissem que comprar
o colchonete mais barato não fora uma boa opção. Havia outros modelos,
térmicos, aquecidos, porém custavam quatro ou cinco vezes mais que o valor do fino
colchonete de espuma. No surpreendente solo frio, mesmo sendo verão na Alemanha,
a temperatura lá fora era de 11 graus.
Outra
descoberta importante. Aquele não era um camping para lençóis finos. Era
necessário um grosso edredon aquecido. Tanto Luciano Correia como o amigo
bolsista optaram pelo lençol mais barato. Se o bolsista estava economizando no
período em que vivia na Alemanha, Luciano era famoso, segundo o poeta de muitas
saudades Amaral Cavalcante, pela sua aversão a gastos que pareciam
desnecessários.
Por
último, a descoberta de que comprar uma fina e pouco custosa barraca de nylon,
também não fora a melhor das opções. Existiam muitos modelos de tendas
fabricadas com material mais grosso e que protegiam contra o frio. As
Wintercampingzelt, ou seja, barracas de camping de inverno. O preço era,
naturalmente, mais caro.
Por
volta de uma da madrugada cada um dos dois campistas de primeira viagem
abandonou a barraca. Resolveram dormir o resto da madrugada, que já apresentava
uma temperatura de quatro graus, nos bancos do carro. Uma garrafa de vinho e o
motor do veículo ligado para fazer o aquecedor funcionar. Em menos de três minutos,
um alemão batendo furiosamente no teto e gritando: “WAS BEDEUTED DAS?”
O
que isto significa? Eram muitos os gritos do alemão. Arguiu que não era possível
o motor de um carro ligado naquele local, àquela hora. Desfilou o seu rosário
afirmando que o ruído do motor perturbava a lei do silêncio, os gases, poluíam
o ar. Não havia outra alternativa. O motor foi desligado. O frio voltou. A
temperatura já era de um grau centígrado. Duas da madrugada.
Cada
um tomou uma garrafa de vinho. O lençol e o colchonete levados para dentro do
carro ajudaram um pouco. A bebedeira e o cansaço venceram o frio e o sono
chegou. Dormiram até as oito da manhã, quando o sol e a elevação da temperatura
acordaram os campistas. A viagem prosseguiu até o fim, de acordo com o planejamento.
A partir daquele dia só dormiram em hotéis. Aquela foi a primeira e a última
noite de camping.
*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
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