Jorge
Carvalho do Nascimento*
Talvez
por haver assumido a consciência de que o sofrimento purifica, a Irmã Dulce
visitava diariamente o hospital, na cidade de Salvador, Estado da Bahia. Em
primeiro lugar, os pacientes de maior gravidade, portadores de doenças
contagiosas. Preferia os tuberculosos e os portadores de outras enfermidades
graves. Distribuía abraços e nas visitas recusava as luvas, máscaras e aventais
que enfermeiros e médicos lhe ofereciam.
Sofria
de todas as formas possíveis. Diferente das suas irmãs de congregação, usava um
hábito pesado, de tecido grosso e pouco adequado ao calor da Bahia. Comia muito
pouco e dormia uma quantidade mínima de horas. Uma das suas formas de
penitência, durante mais de três décadas, foi atravessar a noite sentada em uma
cadeira de madeira ao lado da cama. Nunca deitava e não usava qualquer tipo de
estofamento no assento ou no encosto da cadeira.
Dentre
as suas práticas penitenciais incluía o jejum, não apenas em dias de celebrações
religiosas, o que frequentemente a levava a situações de anemia. Também adotava
o silêncio. Sofrer foi um dos aprendizados que cultivou durante a sua passagem
pelo Convento dos Carmelitas, em São Cristóvão, no Estado de Sergipe. Assumo aqui
a análise feita por Graciliano Rocha, o seu principal biógrafo, no livro IRMÃ
DULCE, A SANTA DOS POBRES.
“Do
ponto de vista da sua espiritualidade, o modo como vivia evidenciou
dramaticamente a crença de que sofrer é uma dádiva de Deus. A penitência tinha
significado espiritual. O conjunto desses comportamentos cobrou um tributo
pesado na saúde: ao final da vida, seus pulmões operavam com menos de um terço
da capacidade.
Sua
morte foi precedida por um ano de muita dor em uma UTI instalada em seu quarto
no convento. A lenta agonia foi o destino de sua busca incessante pelo martírio
tão valorizado na tradição dos santos católicos. ‘Este é o sofrimento do
inocente. Igual ao de Jesus’, comparou o Papa João Paulo II (1920-2005) ao
visita-la em seu leito de morte, em 1991” (p 14-15).
Até
a sua morte, em 13 de março de 1992, a Irmã Dulce foi uma entusiasmada
seguidora dos ensinamentos da Encíclica Rerum Novarum. O documento
pontifício Das Coisas Novas, firmado pelo papa Leão XIII em 1891 orientou a
chamada doutrina social da Igreja Católica ao longo do século XX.
Era
uma tomada de posição diante de dois polos opostos que marcaram a transição do
século XIX para o século XX e que foram vistos como ameaçadores da fé católica.
De um lado, a acelerada expansão da doutrina protestante, por todos os
continentes. De outro, as ideias marxistas que tinham na luta de classes um dos
seus cânones.
A
Encíclica Rerum Novarum propunha a cooperação entre as classes, posição
assumida pela Irmã Dulce que passou a vida pregando serem ricos e pobres
igualmente filhos de Deus. Os protestantes preocupavam a Sé romana por difundirem
um tipo de Cristianismo preocupado não apenas em levar o homem ao gozo eterno
após a morte, mas também por afirmar que a prática religiosa o ajudava a ter
conforto material aqui na terra.
A
mesma Encíclica Das Coisas Novas entendia que ao desnaturalizar e colocar na
terra as origens das diferenças sociais, a doutrina de Karl Marx distanciava os
homens da fé. O Marxismo mostrava o caminho do engajamento na luta em defesa
dos seus interessas de classe como a melhor forma que tinham os indivíduos para
superação da desigualdade na distribuição de riqueza entre os homens.
A
Irmã Dulce viveu no século XX, em um Brasil no qual a sociedade foi governada
por duas ditaduras. Em ambas, o velho pretexto do anticomunismo para justificar
os golpes que foram desferidos contra as instituições democráticas e a
usurpação do poder, marcas emblemáticas da vida política do Brasil republicano.
A
menina Maria Rita veio ao mundo na cidade de Salvador, no Estado da Bahia, mas
a freira Irmã Dulce nasceu em Sergipe, na cidade de São Cristóvão. Iniciou o
seu trabalho de missionária em Salvador pouco tempo depois do golpe com o qual
Getúlio Vargas depôs Washington Luiz, o presidente constitucionalmente eleito.
O
seu trabalho começou na rua, vivendo e cuidando dos que não tinham onde morar,
dos que perderam a dignidade, dos que estavam sendo destruídos pelas
enfermidades da pobreza, da subnutrição, do abandono, dos maus tratos. Era, sob
este ponto de vista, uma freira diferente das outras.
*Jornalista,
professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e
presidente da Academia Sergipana de Educação.
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