Jorge
Carvalho do Nascimento**
Marciano
era sempre o primeiro a chegar. Cara redonda e tez amarelada com manchas na
pele, cabelos pixaim, a proeminente barriga d’água e canelas muito finas que
combinavam com braços esquálidos. Eram visíveis as marcas da subnutrição dadas
pela pobreza dos meninos que lutavam para sobreviver no chamado bairro de São
José.
Em
1969, o aglomerado urbano ainda tinha ares de zona rural e, aos poucos, as
invasões de terrenos e os loteamentos baratos permitiam ver os arruamentos que
se formavam, embora aquela comunidade de pescadores pobres à margem do rio Jaguaribe,
em João Pessoa, a bela capital do Estado da Paraíba, ainda tivesse características
de zona rural.
Sentado
sob a oscilante e fraca luz de um dos poucos postes de iluminação elétrica daquilo
que os moradores do São José chamavam de praça, Marciano folheava um gibi do
Fantasma, encantado com as aventuras do herói defensor do povo africano nativo
do fictício país de Bangalla.
Aos
poucos, os amigos iam chegando. Onildo, Guê, Piniquete e Roboão, residentes
como ele no bairro São José, chegavam primeiro. Todos igualmente paupérrimos. Vestidos
em seus calções de mescla, camisa volta ao mundo puída e sandália japonesa
muitas vezes remendada na alça do dedo com um grampo de cabelo (a misse) ou um
prego fino.
Os
amigos que viviam na outra margem do rio Jaguaribe, no bairro Manaíra, chegavam
um pouco depois. A caminhada era mais longa e era necessário muito cuidado ao
atravessar a tosca pinguela de madeira com corrimão precário de ripas que unia
as duas margens do curso d’água.
Aos
cinco já presentes se uniam Romualdo, Arildo, Zé Anequim e Maneco. Eram um
pouco menos miseráveis, porém igualmente pobres. Moravam numa região do bairro
Manaíra, em casas com quintais grandes e cheios de fruteiras, porém cada vez
mais cercados pelas habitações de classe média construídas por professores
universitários que transformavam aquela margem do rio Jaguaribe num aglomerado cujos
moradores eram intelectuais e detentores de outras das chamadas profissões
liberais, como advogados, médicos e engenheiros.
A
narrativa daquela noite era Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas. Marciano
prendeu a atenção de todos os amigos, contando detalhadamente o ambiente da Grande
Depressão norte-americana, contexto que emoldura a história. Bonnie Parker ao se
apaixonar pelo ex-presidiário Clyde Barrow quando este tentou roubar o carro da
sua mãe. Juntos iniciaram ali uma longa carreira de assaltos e roubos a banco
até conhecerem um trágico fim.
A
trama emocionou a todos. Maneco, mais cândido e sensível, chegou às lágrimas.
Era sempre assim com aquele grupo de meninos pobres. Nenhum deles dispunha de
15 cruzeiros para pagar a meia entrada do cinema. Marciano, era o mais pobre,
porém sabia narrar como nenhum deles. Se encontravam aos sábados na porta do
cinema do bairro de Manaíra. Olhavam os cartazes e decidiam o filme que seria
visto por Marciano no domingo. Cada um deles contribuía com dois cruzeiros,
exaurindo as economias da semana.
As
noites dos domingos eram dedicadas a ouvir a narrativa feita por Marciano, carregada
de emoção e com uma impressionante riqueza de detalhes que sequer o próprio roteirista
da película seria capaz de memorizar e reproduzir com tanta perfeição quanto o
fazia aquele menino de 13 anos de idade.
A
vida os separou. Três deles estudaram, ganharam dinheiro e projeção social,
transformados uma década depois em advogado, empresário do setor de transporte
coletivo e executivo da área de comunicação. Dois viraram funcionários públicos
mal remunerados. Um foi morto em uma troca de tiros com a polícia, quando foi
estourado um depósito de distribuição de drogas no bairro São José. O sétimo
criava a família com dignidade como caminhoneiro que transportava cargas na
rodovia Rio-Bahia.
14
anos depois de ter ouvido aquela narrativa, Arildo, importante executivo da
área de comunicação, vivendo no Rio de Janeiro, fez uma viagem de trabalho a
João Pessoa. Lembrou do velho amigo de infância, Marciano, e resolveu visitá-lo.
O terreno cercado de fruteiras com a casa sem reboco e coberta de telhas vãs
ainda era o mesmo.
Estacionou
o Opala Diplomata que alugara numa locadora de veículos. Desceu, bateu palmas e
reconheceu Dona Lenira, a mãe de Marciano. Os mesmos cabelos desgrenhados pela
pobreza e sulcos mais profundos de sofrimento sob a forma de rugas cravadas no
rosto.
Soube
que o seu amigo Marciano morrera atropelado numa rua do centro de João Pessoa,
quando puxava o carrinho carregado de papelão reciclável que recolhia em alguns
escritórios e vendia para garantir o sustento da família. Arildo ofereceu um bom
dinheiro para ajudar a fazer alguns reparos na casa e também para as despesas de
consumo imediato de Dona Lenira, que àquela altura morava sozinha na residência.
Conversaram
demoradamente. Arildo lembrou da capacidade que tinha o inteligente Marciano de
ver a película e em seguida contar a história e emocionar a todos. Só então
ficou sabendo que o amigo também nunca fora ao cinema. 16 reais recebidos
semanalmente com a coleta era a garantia de consumo de pão da família no café
da manhã de três dias a cada semana.
*Dedico este texto
ao meu amigo jornalista Nestor Amazonas, com quem costumo trocar ideias que
rendem boas histórias.
**Jornalista,
professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e
presidente da Academia Sergipana de Educação.
Nasci e me criei no bairro Santo Antônio. No final do bairro Santo Antônio, fronteira com o Bairro Palestina e 18 do Forte. Sua história me fez lembrar dos meus tempos de criança, quando ia assistir vãos filmes de cowboy,no Cine Star( cidade nova) Cine Atalaia(Santo Antônio) Quando eu chegava do cinema,contava tudo o que vi aos meus amigos Wilson, (saudoso) Ivan,e Reginho. Eles por serem mais novos, não podiam entrar no cinema.
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