Jorge
Carvalho do Nascimento*
Manoel
Armindo Cordeiro Guaraná é reconhecido sempre como jornalista, historiador e
biógrafo. São poucas as referências ao seu nome que o apresentam como
intelectual do Direito. Assim, para a composição do presente estudo, foi muito
importante a consulta que realizei aos trabalhos produzidos por Eugênia Andrade
Vieira da Silva, doutora em Educação que vem se dedicando a estudar a formação
da elite e a trajetória dos intelectuais em Sergipe.
Outro
importante estudo consultado é de autoria do médico e advogado Francisco
Guimarães Rollemberg, membro da Academia Sergipana de Letras. Rollemberg
exerceu quatro mandatos de deputado federal e um de senador da república, entre
os anos de 1971 e 1995. É autor de vários trabalhos muito qualificados a
respeito da história de Sergipe e de intelectuais sergipanos. Não obstante ser
reconhecido e aplaudido como médico cirurgião e líder político, é fundamental
que prestemos atenção a suas contribuições como estudioso da História e da
Sociologia, campos nos quais a obra de Francisco Rollemberg é relevante.
Cito
também o trabalho assinado pelo desembargador federal Vladmir de Souza
Carvalho, membro da Academia Sergipana de Letras, Academia Itabaianense de
Letras e Academia Sergipana de Letras Jurídicas, que analisou as condições de trabalho
do juiz de Direito sob i Império e também sob o Estado republicano brasileiro.
Do
mesmo modo, é fundamental o artigo “Armindo Guaraná e a Transição do Magistrado
do Final do Império para a Primeira República: Uma Análise de Parte de Seus
Julgados Como Juiz Federal na Seção Judiciária do Ceará na Primeira
República”. O texto tem como autor o
juiz federal Ronivon Aragão, membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas,
onde ocupa a cadeira que tem Armindo Guaraná como patrono. A esses quatro
autores, o meu reconhecimento e a minha gratidão. A eles dedico este texto
acerca de Manoel Armindo Cordeiro Guaraná.
Discuto
aqui, inicialmente, o Manuel Armindo Cordeiro Guaraná que ganhou notoriedade em
Sergipe como intelectual ao publicar o seu Dicionário Bio-Bibliográfico
Sergipano, que somente ficou pronto em 1925. Neste ano de 2021, 97 anos após a
sua morte, ocorrida no ano anterior ao da publicação do seu Dicionário, quando
Armindo Guaraná contava com 76 anos de idade, o livro continua a ser obra de
referência para o estudo da geração de intelectuais que viveu e atuou em
Sergipe, principalmente ao longo do século XIX e nas duas primeiras décadas do
século XX.
Aposentado
no Ceará em 1911, Guaraná continuou vivendo entre Sergipe, o Espírito Santo e o
Rio de Janeiro. Em Aracaju, atuou como agitador cultural ao lado de Prado
Sampaio, Manoel dos Passos de Oliveira Teles, Ávila Lima, Lima Junior e do
Almirante Aminthas Jorge, que lideravam à época as atividades do Instituto
Histórico e Geográfico de Sergipe.
A
partir de 1912, Guaraná foi sócio fundador, honorário e correspondente para o
Espírito Santo do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Coordenou a
comissão que fez as gestões que permitiram trasladar os restos mortais de
Tobias Barreto de Menezes para Sergipe. Também trabalhou levantando documentos
sobre a História e a Geografia de Sergipe. E auxiliou o escritor baiano
Sacramento Black quando este organizou o seu dicionário biobibliográfico
brasileiro.
O
avanço dos estudos de Manoel Armindo Cordeiro Guaraná acerca da questão dos
intelectuais fica visível no processo que ele utilizou para compor a lista de nomes
que figuram no seu Dicionário Bio-Bibliográfico. Os critérios adotados por
Guaraná voltaram, no final do século XX, a ser objeto do debate feito por sociólogos
e historiadores na caracterização de quem é intelectual.
O
estudioso francês Jean François Sirinelli, autor do artigo “Elites Culturais”,
publicado em 1997, afirmou que o conceito de intelectual engloba duas acepções:
“uma ampla e sócio-cultural, composta pelos criadores e os mediadores
culturais, a outra mais estreita, baseada na noção de engajamento”.
São
criadores e mediadores culturais aqueles que ativamente participam do processo
de criação artística, literária, científica e de outras formas do progresso do
saber, e também os que contribuem para divulgar o trabalho dos criadores. Como
intelectualmente engajados estão aqueles que se debruçam sobre os elementos das
práticas culturais das suas comunidades, cultura aqui entendida em sentido
antropológico.
Armando
Guaraná relacionou entre os seus biografados não somente os que tinham formação
no ensino superior, mas todos os que estavam legitimados na condição de intelectuais
pelo fato de pertencerem a instituições culturais e científicas, por serem
reconhecidos pelos seus pares e também pela autoria de trabalhos intelectuais.
Dos intelectuais biografados por Guaraná, mais de 60 por cento possuíam
diplomas conferidos pela conclusão de cursos de graduação enquanto cerca de 35
por cento não eram detentores de tal privilégio.
A
historiadora Eugênia Andrade Vieira da Silva, na sua dissertação de mestrado
intitulada A Formação Intelectual da Elite Sergipana, cita o bibliotecário
Epifânio Dória. Em texto de 1926, publicado pelo jornal Diário da Manhã, este
explicita o método de trabalho adotado por Armindo. Ao comentar a referência de
Guaraná ao maestro Tobias de Magalhães, diz Epifânio: “Tobias de Magalhães, por
nunca ter se consagrado à literatura e não ter publicado livros ou opúsculos,
não seria de figurar no Dicionário Bio-Bibliográfico Sergipano, do Dr. Armindo
Guaraná. O autor deste livro, porém, admirador do grande talento de Tobias, não
pode fugir ao desejo de contemplá-lo no seu dicionário, e assim abriu mais uma
exceção, incluindo no livro o seu nome”.
O
trabalho do biógrafo Armindo Guaraná nos permite compreender o processo de
formação da elite intelectual em Sergipe. Claro que os seus critérios ao mesmo
tempo que revelam também ocultam, posto que os intelectuais selecionados por
ele são quase todos ligados a instituições governamentais e publicaram sua
produção em jornais, revistas e/ou livros em Sergipe e/ou em outros Estados e
até em outros países.
A
originalidade do trabalho de Armindo Guaraná também se revela quando este, no
início do século XX, se desgruda dos grandes feitos políticos, como era próprio
à historiografia da época, e se debruça sobre a ação do indivíduo criador
intelectual. A partir do indivíduo, Guaraná constrói a ambiência das práticas
culturais sergipanas no século XIX e na primeira metade do século XX.
O
pioneirismo de Guaraná fez também com que ele listasse dentre os seus
biografados duas mulheres sergipanas que se destacaram no século XIX pela sua
atividade intelectual: Antônia Angelina de Figueiredo Sá e Etelvina Amália de
Siqueira, ambas professoras desde o período imperial. A primeira, filha do
major Xavier de Figueiredo e viúva de José Sotero de Sá, capelense, nascida em
1863 no engenho Tabocal.
Em
Aracaju, no início do século XX, Angelina foi professora da Escola de
Aprendizes Artífices e do Grupo Escolar Modelo, autora de um livro de Geografia
e Corografia do Brasil, com noções de Geografia Geral e Cosmografia. Etelvina
Amália de Siqueira, além de professora publicou muitos trabalhos em jornais de
Aracaju e de Pelotas, no Rio Grande do Sul.
Armindo
Guaraná foi poeta, prosador, historiador, geógrafo, jornalista e biógrafo. O
reconhecimento do seu trabalhou intelectual fez com que recebesse a comenda
“Libertador Simon Bolivar”, da Venezuela, e a medalha de ouro da “Societé
Academique d’Histoire” de Paris.
O
Intelectual do Direito
O
profissional do Direito Armindo Guaraná, nascido em 4 de agosto de 1848 na
cidade de São Cristóvão e graduado em 1871 pela Faculdade de Direito do Recife
e Olinda, aos 23 anos de idade, era filho de um rábula, o advogado provisionado
Theodoro Cordeiro Guaraná e da senhora Andrelina Muniz de Menezes Guaraná.
Seus
primeiros professores em São Cristóvão foram o padre José Antônio Correia
Braga, Marcolino Rocha, Antônio José Rodrigues dos Cotias, Graciliano Aristides
do Prado Pimentel e o padre José Roberto de Oliveira, seu professor de Latim. A
fim de concluir os estudos, Guaraná migrou para a Bahia, onde frequentou o
internato do Colégio 2 de Dezembro e depois o Atheneu Baiano.
Mudou-se
para Pernambuco, onde concluiu o curso de Humanidades no Colégio das Artes e no
Colégio São Joaquim. Ingressou na Faculdade de Direito do Recife e Olinda em
1867, aos 19 anos de idade. Após a colação de grau em Direito, Armindo Guaraná
retornou a Sergipe e aqui atuou como Promotor Público nas comarcas de São
Cristóvão, Itabaiana e Estância. Foi procurador da Tesouraria Provincial e juiz
de Direito da comarca de Itabaiana. Armindo Guaraná teve assento como deputado
na Assembleia Provincial durante os anos de 1880 e 1881.
Transferiu-se
para a Província do Piauí, onde exerceu os cargos de secretário de governo,
chefe de Polícia, lente interino de Latim do Liceu Piauiense e juiz de Direito
de Oeiras. Transferido para a província do Ceará, trabalhou como secretário de
governo e, após a proclamação da República exerceu o cargo de juiz federal, que
obteve por aprovação em concurso público. No Estado do Espírito Santo foi
desembargador do Tribunal de Justiça, a partir de 1890, acumulando a função com
a de Procurador da Soberania do Estado.
No
Rio de Janeiro, manteve banca de advocacia por mais de dez anos. Foi naquela
cidade que iniciou as pesquisas do seu Dicionário Bio-Bibliográfico Sergipano.
As
suas qualidades como profissional do Direito são destacadas num texto citado
por Francisco Guimarães Rollemberg em seu artigo publicado no ano de 2020 pela
Revista Somese sob o título “Dr. Manoel Armindo Cordeiro Guaraná”. Diz
Francisco que Guaraná “mereceu do Cel. Hermógenes Vicente de Carvalho, político
de oposição, o elogio a sua integridade, quando dirige ao Dr. Lourenço de
Figueiredo Valente, juiz de Direito do Maranhão, carta com o seguinte teor:
‘...É portador desta o Dr. Guaraná que fora removido para Itabaiana na
Província de Sergipe’. Aqui residiu dois anos como juiz, é a glória da
Magistratura Brasileira e como particular, o tipo de honestidade e exemplo de
virtude. Feliz da terra que o possuir qualquer caráter. Sou insuspeito por
assim falar, pois como sabes sou de uma política oposta a dele. Em outros
tempos, houve aqui um juiz, Antonio Borges Leal Castelo Branco, mas como um
Manoel Armindo Cordeiro Guaraná, jamais houve e dificilmente haverá. O
sentimento foi geral, e disto dão prova os seus habitantes, por uma moção ou
felicitação que lhe dirigimos, assinado Hermógenes”.
O
desembargador federal Vladmir de Souza Carvalho, em trabalho citado pelo juiz
federal Ronivon Aragão, analisa o quadro de dificuldades enfrentadas por Manoel
Armindo Cordeiro Guaraná ao exercer a magistratura em Itabaiana, no século XIX,
situação comum a todos os juízes da sua época. Afirma Vladmir: “Como todos os
magistrados da época, ingressa na magistratura sem concurso público, dependendo
apenas da indicação política. (...) Como não tinham nenhuma estabilidade, a não
ser a lealdade ao chefe do Poder Executivo, não estavam os magistrados imunes à
política partidária, nela se imiscuindo de forma intensa. (...) O juiz de
Direito da comarca de Itabaiana era, estampadamente, um liberal, numa sociedade
dividida entre liberais e conservadores”.
Armindo
Guaraná experimentou as limitações de ser juiz sob o Império e também sob o
Estado republicano. Como juiz federal do Estado republicano, Guaraná tomou
decisões que buscavam manter o equilíbrio federativo e dirimir conflitos que
diziam respeito ao problema da autonomia dos entes federativos, principalmente
no Estado do Ceará, onde atuou.
De
acordo com o estudioso Ronivon Aragão em seu artigo “Armindo Guaraná e a
Transição do Magistrado do Final do Império para a Primeira República”, em
1905, o juiz Armindo Guaraná já percebia “a dimensão da atividade judicante
nessa nova quadra da História brasileira. Diz Ronivon: “...dentro da discussão
jurídica, existe todo um ‘pano de fundo’ sobre a conformação do novel
federalismo brasileiro, ainda se ‘acostumando’ com um Judiciário que passa a
intervir na atividade estatal de forma direta. (...) E, pairando como último
momento da decisão, havia o STF, segunda instância da Justiça Federal e última
instância para os demais ramos do Poder Judiciário, a demonstrar a mudança
radical porque passou o sistema, em tudo diferente do período imperial”.
A
diversidade temas sobre os quais os juízes da República passaram a se
manifestar, efetivamente, foi responsável por muitas inovações, como as
decisões acerca das demandas eleitorais. Em tal campo era muito grande a
quantidade de questionamentos jurídicos, principalmente quanto a possibilidade
do uso do habeas corpus como instrumento de garantia impeditivo da violação dos
direitos do cidadão eleitor.
Tudo
era novo e tanto os magistrados quanto a suprema corte tomavam decisões que
impactavam a sociedade pela condição inovadora a elas aderente. Assim o habeas
corpus teve a possibilidade de ser utilizado para garantir a matrícula de
menores interessados em ingressar na escola de aprendizes de marinheiros, mesmo
sem o consentimento materno; evitar a apreensão de filhas menores que estavam
sob o poder paterno; garantir o exercício de funções legislativas; e, outras
tantas questões.
A
reorganização da justiça no Brasil durante o período de transição do Império à
República é um tema que requer um desvendamento mais aprofundado. O objeto está
clamando aos estudiosos que se debruçam sobre o constitucionalismo e sua
história, particularmente aos dedicados a História do Poder Judiciário mais
pesquisas originais e inovadoras.
*Jornalista, professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, presidente da Academia Sergipana de Educação e membro da Academia Brasileira Rotária de Letras de Sergipe.
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