Jorge
Carvalho do Nascimento*
De
família católica, fui batizado por Joel, pouco tempo depois do meu nascimento.
Meu padrinho e meu pai eram amigos íntimos e fraternos. Todavia, após receber o
sacramento da crisma é que compreendi efetivamente a força que tinham os
padrinhos católicos até a metade do século XX.
Ainda
criança, numa Sexta-Feira da Paixão, logo após ser crismado, recebi dos meus
pais a ordem que era compatível com o padrão cultural reinante à época. Nunca
esqueci das palavras peremptórias do meu pai: “Vá até a residência do seu
padrinho Maximiliano e, de joelhos, tome a benção dele pela passagem da sexta-feira
santa”.
O
Cânone 849 do Código de Direito Canônico apresenta o batismo como “porta dos
sacramentos, necessário na realidade ou ao menos em desejo para a salvação, e
pelo qual os homens se libertam do pecado, se regeneram tornando-se filhos de
Deus e se incorporam à Igreja, configurados com Cristo mediante caráter
indelével”. O batismo apaga a “mancha” do que diz o catecismo ser o “pecado
original”.
A
tradição do batismo católico remonta ao século quarto da era cristã. Desde
então, cabe aos padrinhos professarem a fé em nome da criança levada ao batismo,
além da responsabilidade de educá-las conforme a doutrina católica, coadjuvando
os pais. De acordo com o magistério da Igreja Católica, no batismo “morre o homem
velho e nasce o homem novo”. Não apenas do ponto de vista espiritual, mas
também esta é a regra no que concerne a existência material da vida na terra.
O
cuidado na escolha dos padrinhos foi a marca das famílias católicas de todo o
mundo, inclusive as brasileiras, até a metade do século XX. Na segunda parte
daquela centúria, as práticas dos católicos se flexibilizaram desse ponto de
vista, não obstante a Igreja Católica haver mantido a sua doutrina.
Portanto,
ser padrinho e, também participar das atividades do serviço religioso conferia
prestígio social aos praticantes do catolicismo. Tomo neste texto como exemplo
o caso de Ozéias Carvalho, sergipano, nascido em Macambira, que na década de 20
do século passado migrou com todos os seus irmãos do sexo masculino para o
Estado de Minas Gerais, a fim de trabalhar na obra de implantação da Estrada de
Ferro Vitória-Minas.
Ozéias
se transformou em empregado da Companhia Vale do Rio Doce que no pós-segunda
guerra mundial assumiu a propriedade da ferrovia Vitória-Minas, depois que o
presidente da República, Getúlio Vargas, confiscou os bens dos súditos dos
países do Eixo, a partir do momento em que o Brasil ingressou no conflito, aliado
dos Estados Unidos da América.
Desde
os tempos que vivia em Sergipe, Ozéias era católico praticante. E assim continuou
a viver em Minas Gerais, principalmente na cidade de Resplendor, onde permaneceu
por uma maior quantidade de anos. Normalmente, ele liderava muitos serviços da
sua paróquia.
Exercer
papéis relevantes no serviço religioso estabelecia uma rede de proteção
idêntica àquela que funciona nas grandes associações voluntárias, a exemplo da
Maçonaria. O próprio Ozéias Carvalho teve a oportunidade de experimentar a
eficácia de tal rede, numa determinada ocasião.
O
ciclo de festas religiosas do mês de maio envolvia muitos compromissos dos
colaboradores. Ozéias estava coordenando o trabalho numa das equipes em que o
chefe da estação de trem, na qual o mesmo trabalhava, também era participante. Ambos
tinham responsabilidades relevantes na paróquia. Contudo, os dois tinham
dificuldades de relacionamento por rusgas resultantes do ambiente de trabalho. Permanentemente,
um desconfiava do outro.
Ozéias
era um homem duro nas suas atitudes. Executando uma das tarefas, ele quebrou a
perna e ficou durante 30 dias sem condições de trabalhar. No final do mês, ele
preveniu a família: “este mês teremos algumas dificuldades porque eu não vou
receber nenhuma remuneração. Eu não trabalhei nenhum dia”
O
guarda-chaves Ozéias foi surpreendido no dia do pagamento, ao receber
integralmente a sua remuneração. O chefe da estação, com quem ele tinha
dificuldades de relacionamento, consultou o padre e outros companheiros do serviço
religioso e decidiram que Ozéias merecia receber toda a sua remuneração, por
haver se acidentado enquanto prestava um serviço que não tinha fins lucrativos
e que atendia demandas coletivas.
Ser
padrinho ou madrinha de batismo era prestar um serviço de relevância à Igreja
Católica, pela responsabilidade assumida no relacionamento com os seus
afilhados e afilhadas. Equivalia a assumir responsabilidades na gestão do
catolicismo.
Ney
Carvalho, filha de Ozéias, relata que aos seis anos de idade ficou afastada da
sua mãe, Zita. A genitora contraiu uma enfermidade que obrigou a sua internação
por longo período em um hospital da cidade de Vitória, capital do Estado do
Espírito Santo.
O
que fazer com a menina? Seu pai, Ozéias, era dedicado em tempo integral ao
trabalho de guarda-chaves da estrada de férreo. A alternativa que a família
encontrou foi a de entregá-la aos cuidados da madrinha. Ney saiu de Resplendor
e foi viver na cidade de Governador Valadares, onde residia a sua madrinha, Ideir,
e o seu padrinho Venâncio.
Em
Governador Valadares, enquanto vivia com a madrinha, Ney foi levada a fazer a
sua primeira comunhão, fato que a marcou muito. Ela explica: “Até os sete anos,
Ney somente podia vestir roupa nas cores azul e branco, porque foi uma criança
muito frágil, nasceu pequenininha, com pouquíssimo peso”.
A
sua mãe fizera uma promessa. Se a menina vingasse, vamos dizer assim, ela
vestiria azul e branco até os sete anos de idade. A menina Ney sempre desejou usar
um vestido cor de rosa. Mas, havia também uma segunda promessa. Ao completar
sete anos de idade ela faria a primeira eucaristia vestida de Santa Teresinha.
Ney
explica: “Quando eu completei sete anos, a minha madrinha não era mais
católica, mas ela fez questão de cumprir o que a minha mãe tinha prometido.
Arranjou a roupa de Santa Teresinha e cuidou de tudo. Mas, quando a gente foi na
Igreja para conversar com o padre e fazer a confissão, ele falou o seguinte –
Dona Ideir, a Igreja está mudando muita coisa e pra essa criança vir amanhã
vestida de Santa Teresinha pra missa, as pessoas vão achar estranho. Eu posso
liberar a promessa. Ela pode vir vestida com outra roupa qualquer”.
Ney
não foi vestida de Santa Teresinha. Usou um vestido de tafetá cor de rosa,
sainha godê que a menina considerou um sonho. Teve a festa de aniversário que
Dona Ideir organizou. Todavia, na cabeça daquela criança ela queria ter feito a
primeira eucaristia vestida de branco, como todas as crianças faziam.
Ney
Carvalho continuou participando ativamente das atividades da Igreja Católica, à
medida que os anos passavam. Intensa na sua fé, ela colaborou com todas as tarefas
da Igreja, participou do coro da sua paróquia, frequentou procissões e outras
celebrações religiosas.
A
partir da segunda metade do século XX, os costumes foram flexibilizados. A Igreja
Católica manteve a sua doutrina, mas a simbologia da condição de padrinho, do
ponto de vista das relações sociais, já não apresenta mais a mesma importância
e o mesmo nível de responsabilidade que se impunha no passado.
*Jornalista, professor aposentado do Departamento de História, do Mestrado em História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe, Doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras, da ABROL e presidente da Academia Sergipana de Educação.
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