Jorge
Carvalho do Nascimento*
Antoine
Adrien Lamourette era um bispo francês que ocupava cadeira de deputado na
Assembleia Legislativa em 1792. Nos tumultuados anos da revolução que se seguiu
ao incêndio da Bastilha, em meio a enforcamentos, assassinatos, guilhotina e
outras formas generalizadas de violência, Lamourette propôs ao parlamento uma
solução inusitada.
No
dia 7 de julho de 1792, como solução aos conflitos, Lamourette sugeriu que
todos os deputados se abraçassem e trocassem beijos de amor. Os parlamentares,
ensandecidos se abraçaram e se beijaram, mas desde os primeiros atos da
revolução os beijos eram na verdade ósculos da morte.
Os
que esboçavam resistência aos revolucionários foram muitas vezes enforcados e
decapitados. Os seus parentes e correligionários foram obrigados a beijar faces
e lábios das cabeças com olhos esbugalhados. A bestialidade humana, ao que
parece, por mais que estabeleçamos regras, jamais será superada.
Lamourette
e outros episódios reveladores da sandice presente na condição humana, sob a
minha ótica, foram bem retratados no ensaio assinado pelo historiador Robert
Darnton – O BEIJO DE LAMOURETTE: MÍDIA, CULTURA E REVOLUÇÃO. Darnton me convenceu
que Lamourette será sempre a face escancarada da morte, por mais que se
dissimule sob a forma de beijo de amor.
A
primeira vez que recebi a visita de Lamourette não percebi que a morte me perseguiria
ao longo de toda a vida. Era ainda muito criança, aos nove anos de idade, para saber
que ao levar minha irmã aquela senhora estava me mandando o seu primeiro aviso,
muito bem sintetizado no poema “Cérebro Eletrônico”, assinado por Gilberto Gil –
“A morte é o nosso encontro primitivo”.
Depois
de Ediana ela veio buscar o meu avô Epifânio. Seguidamente, a minha tia
Terezinha, a minha avó Petrina, o meu tio Mário Vitório Mercuri, a minha avó
Maria, o meu tio Antônio Faustino, a minha mãe, o meu pai, a minha tia Eunice,
sem falar dos amigos e dos parentes mais distantes.
Não
demorou a incursionar pelo meu corpo. Primeiro me presentou com uma diabetes
que descobri aos 30 anos de idade. Na década de 90 do século XX me levou a vesícula.
Em 2007 tentou me levar o coração, mas meus médicos, mais espertos, a afastaram
com a introdução de stents nas artérias cardíacas.
Ser
hospitalizado é claro que assusta, mas eu sempre encarei com naturalidade os
tratamentos aos quais fui submetido. Sempre fui otimista diante desse tipo de
adversidade. Sei que “a gente mal nasce começa a morrer” tal qual ensinam os
versos de Antônio Carlos Jobim e Miucha.
A
primeira vez em que senti a frieza de Lamourette acariciando a minha face
ocorreu agora, no início de julho, quando contraí a Covid-19. Lamourette veio
dissimulada e todos os testes que eu fiz, quando os profissionais de saúde
colocam em nossas narinas um cotonete que parece um tronco de coqueiro, tiveram
resultado negativo.
Fui
internado em uma Unidade de Terapia Intensiva e, felizmente, tratado contra a Covid
e contra a pneumonia bacteriana que havia em poucas horas consumido 50 por
cento da minha capacidade respiratória. Devo a vida à equipe que cuidou de mim
e já externei em outro registro textual a minha infinita gratidão a todos que
se envolveram em tal processo.
No
momento em que você está enfermo é baixo o seu nível de consciência em relação
a sua doença e aos riscos aos quais você está exposto. Somente incorporei tais
horrores depois que recebi alta. O que mais me aterrorizou durante os dias em
que estive internado, nos meus momentos de lucidez, foi perceber o quanto são
doloridos os antecedentes da morte.
Durante
a infância e a adolescência, por várias vezes, ouvi dos amigos em tom de
galhofa a expressão “morra só”. Tenho agora clareza que morrer só é mais
confortável que viver momentos de lucidez e, por segundos que seja, ouvir os
gemidos da dor que não se controla dos leitos que estão próximos aos seu.
É
aterrorizante perceber que uma pessoa próxima a você perdeu o controle dos esfíncteres
e socializou a emissão de gases e material orgânico que o corpo rejeita. Do
mesmo modo, assustador ouvir os alarmes dos monitores advertindo a equipe de
profissionais de saúde da necessidade de socorro urgente a um corpo que está
falindo.
É
possível que alguns amigos de convicções religiosas mais sólidas que as minhas
censurem a reflexão que aqui faço. Espero viver o suficiente para alcançar o
conforto e a certeza dos que não possuem qualquer tipo de dúvida quanto a
verdadeira felicidade que a vida eterna proporciona.
Da
minha parte, ainda não estou preparado para o beijo de La Mourette. Mesmo
quando ele vem disfarçado sob a forma de amor.
*Jornalista, doutor
em Educação, professor aposentado do Departamento de História e do Mestrado e
Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe, membro da ABROL, da
Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
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