Pular para o conteúdo principal

A HISTORIADORA MARIA THETIS NUNES


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Ainda há muito a discutir acerca do que nos legou a professora Maria Thetis Nunes durante os 64 anos ininterruptos nos quais trabalhou como professora e pesquisadora. Nesse período ela publicou 10 livros, além de artigos e ensaios em revistas científicas. Nascida no município de Itabaiana, região do agreste do Estado de Sergipe, em seis de janeiro de 1923, Thetis concluiu o seu curso de graduação na Bahia aos 22 anos de idade, em 1945.

Compreender o seu trabalho requer um acompanhamento atento em torno da sua trajetória de vida, da sua produção bibliográfica e dos artigos que publicou em jornais, revistas, anais de eventos e separatas, enfatizando o olhar que ela lançou sobre os intelectuais. Na sua estreia como intelectual, Thetis concorreu à cátedra de Geografia e História do Atheneu Sergipense com a tese OS ÁRABES: SUA CONTRIBUIÇÃO Á CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL, acerca da civilização árabe, na qual discutiu o Islamismo, a literatura árabe, a arte muçulmana, a Filosofia e a ciência árabes, além da influência muçulmana no Brasil.

A partir daí trabalhou dando aulas e dirigindo o Atheneu Sergipense até a sua mudança para o Rio de Janeiro, em 1956, como aluna do curso de Museologia do Museu Histórico Nacional e depois como estagiária do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – o ISEB. Cinco anos antes de viajar para o Rio, ainda em 1951, foi professora fundadora da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe e a primeira mulher sergipana a ingressar no magistério superior.

Ao final do seu curso, na primeira turma do ISEB, apresentou a monografia Sílvio Romero e Manuel Bonfim – Pioneiros de Uma Ideologia Nacional e passou a atuar como professora assistente de História da Educação, durante quatro anos naquela instituição.

Depois do Rio de Janeiro, trabalhou na Argentina como Adida Cultural do Brasil, na cidade de Rosário. Ao retornar a Aracaju atuou no Atheneu e na Faculdade Católica de Filosofia até a fundação da Universidade Federal de Sergipe, onde ingressou em 1968.

Como decana da UFS por duas vezes ocupou o cargo de vice-reitora. Após a sua aposentadoria recebeu o título de professora emérita. Thetis foi membro do Conselho Estadual de Educação, entre os anos de 1970 e 1981, e, a partir de 1982, do Conselho Estadual de Cultura, até o ano de 1994. Durante seis anos presidiu aquele colegiado.

Também presidiu o Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe durante 30 anos e ocupou a cadeira número 39 da Academia Sergipana de Letras. O seu primeiro texto foi publicado em 1945. Em 1962, pela primeira vez, ela se mostrou como historiadora da Educação.

O seu livro sobre o ensino secundário no Brasil, produzido quando ela era professora assistente de História da Educação no ISEB, foi recolhido pela ditadura militar e teve a sua circulação proibida, em 1964. Em 1973 produziu o primeiro trabalho sobre a História de Sergipe.

Em 1981, inventariou os documentos relativos ao Brasil existentes no Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal e microfilmou todos eles, trazendo os microfilmes para Aracaju. Em 1984 publicou a sua História da Educação em Sergipe.

Em 2003, eu publiquei um ensaio pequeno, porém polêmico, sobre Historiografia Educacional Sergipana. O trabalho teve prefácio assinado pela historiadora Maria Thetis Nunes, a primeira-dama da Historiografia de Sergipe e autora do mais importante compêndio de História da Educação sergipana, já citado, publicado em 1984 e até hoje o único existente.

No prefácio, Thetis destacou a necessidade de ampliar a pesquisa sergipana em História da Educação e a contribuição do meu livro ao lançar o olhar investigador sobre os modos de estudar a História educacional dos intelectuais que atuavam em Sergipe e que optavam pela pesquisa em tal campo.

É possível afirmar que Thetis proporcionou um momento de grande impulso nos estudos sobre História da Educação em Sergipe, na década de 1980, em face do seu trabalho, a partir da posição que ocupava no Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe.

Ela publicou uma grande quantidade de estudos e estimulou a realização de muitos outros. Em 2008, Thetis foi homenageada pela Sociedade Brasileira de História da Educação, durante o V Congresso Brasileiro de História da Educação, realizado em Aracaju.

Voltando a 1984, no mesmo ano em que publicou a sua HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM SERGIPE, Maria Thetis Nunes também colocou em circulação o primeiro volume da História de Sergipe Colonial. Com ela, os pesquisadores sergipanos de História aprenderam a produzir interpretações de caráter marxista em seus textos.

Ela é fundamentalmente uma intérprete da História de Sergipe, debruçada sobre a análise da Economia, da vida social, das atividades lúdicas, das atividades intelectuais, dos estudos biográficos.

Ao tomar posse na Academia Sergipana de Letras, em abril de 1983, Thetis manifestou no primeiro discurso que fez, toda a sua consciência diante da História, explicitando a posição ideológica que assumia: “Creio na marcha da História, no devenir, no advento de um mundo mais justo e mais humano. Apesar de ter vivido parte da minha vida sob dois regimes ditatoriais, cultuo a liberdade. (...) Também estou com os que lutam defendendo a cultura ancestral, dilacerada em nome da civilização cristã ocidental, como fazem os povos da África negra ou da Ásia tropical. (...) Assim tenho caminhado impulsionada pela luta e pela esperança”.

Sua historiografia está assentada sobre a contribuição teórica do Marxismo, valorizando principalmente o diálogo com Plekhanov, a partir de quem entende estar “a organização social em equilíbrio instável, onde as forças produtivas sociais estão em crescimento”. Para ela, “Labriola assinala com razão que exatamente esta instabilidade, bem como os movimentos sociais e as lutas de classes sociais por ela [a Historia] engendradas, preservam os homens da paralização intelectual”.

Esse modo de ler a História foi aperfeiçoado por Maria Thetis durante o período em que atuou como bolsista-estagiária e professora assistente do Instituto Superior de Estudos Brasileiros – o ISEB. O Instituto agrupava as mais diversas tendências ideológicas, buscando interpretar a realidade nacional, de modo a arrancar o Brasil do subdesenvolvimento para levá-lo ao que os seus teóricos consideravam o desenvolvimento.

Certamente, para as reflexões acerca da História feitas por Thetis Nunes em tal período, foram muito importantes as contribuições oferecidas por Nelson Werneck Sodré, mas não é possível desconsiderar o peso dos estudos realizados no mesmo ISEB por Alberto Guerreiro Ramos, Álvaro Vieira Pinto e Ignácio Rangel.

Não sem propósito, é a estes que ela dedica o seu livro ENSINO SECUNDÁRIO E SOCIEDADE BRASILEIRA, publicado em 1962, resultante dos estudos que realizou no Rio de Janeiro. Alberto Guerreiro Ramos foi homenageado novamente em 1984, quando a autora colocou em circulação o livro HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO EM SERGIPE.

Os padrões de interpretação da História que Thetis Nunes incorporou no ISEB chegaram ao Brasil em face da interlocução de muitos intelectuais com o pensamento circulante na Comissão Econômica Para a América Latina – CEPAL, que funcionava no Chile desde 1948.

Um desses brasileiros era Alberto Guerreiro Ramos, ao qual Thetis homenageou por tê-la ensinado a compreender e operar a lógica dialética. A historiadora sergipana assumiu dele a concepção “faseológica” da História, “a noção de que a história tem fases que se sucedem e que a adequação dos instrumentos de análise às peculiaridades da fase em que se encontra o analista corresponde a um gesto revestido de rigor científico e, acima de tudo, de compromisso político com a superação das agruras daquele momento”.

Isso levava Guerreiro Ramos a propor a chamada redução sociológica que entusiasmou Maria Thetis Nunes. Assim, as teorias formuladas pelos teóricos das ciências humanas na Europa e nos Estados Unidos da América deveriam passar pelo crivo empírico da realidade local e somente teriam validade quando interpretadas vis-a-vis com as condições produzidas pelo capitalismo no Brasil. Foi esse entusiasmo de Maria Thetis que levou Nelson Werneck Sodré a elogiar o seu trabalho:

“O condicionamento histórico fica perfeitamente claro: a cada etapa do desenvolvimento brasileiro corresponderam, necessariamente, um sistema educacional e as transformações que lhes foram próprias. (...) A professora Maria Thetis Nunes coloca esse desenvolvimento de forma clara e objetiva, situando cada uma das fases e as transformações que lhes foram próprias”.

A historiografia de Maria Thétis Nunes tem ainda duas outras características: a primeira diz respeito à luz que lançou sobre Manoel Bonfim, a quem designou “pioneiro de uma ideologia nacional”; a segunda concerne a isenção com que a pesquisadora observou as relações entre o regional e o nacional, sem qualquer tensão.

Para entender a historiadora Maria Thetis Nunes, são muito importantes os estudos realizados por ela em torno dos intelectuais. Recompor suas trajetórias, seus lugares, suas intervenções na cena cultural e política pode ensejar uma compreensão mais acurada dos processos mediante os quais foram cotejados e postos em disputa padrões de formação da vida social.

A obra da professora Thetis se debruçou sobre grande número de intelectuais que de diferentes origens acadêmica e profissional deram suporte à vida cultural brasileira. Os intelectuais estudados por esta autora marcaram a vida de Sergipe e do Brasil. É evidente que toda a sua produção bibliográfica está pontuada pelo diálogo que a autora manteve com estes.

É muito grande, portanto, o destaque que tem na obra de Maria Thetis Nunes o estudo da intelectualidade, uma vez que, estatisticamente, sem valorar a produção e computando-se apenas título por título, esse tipo de trabalho representa metade da produção intelectual da autora presente em jornais, revistas e anais de congressos.

Por contraditório que possa parecer, o conjunto de estudos realizados por Maria Thetis Nunes sobre intelectuais leva à reflexão a respeito do papel que o indivíduo exerce na história. Coisa que parece pouco óbvia a uma marxista, se considerarmos que o marxismo evidencia estruturas, a exemplo do Estado e das classes sociais, secundarizando os indivíduos.

Thetis, valorizou a importância do sujeito/indivíduo e comungou com Vavy Pacheco Borges, “os problemas de interpretação de uma vida são riquíssimos, pois nos defrontam com tudo que constitui nossa própria vida e as dos que nos cercam. Num círculo vicioso, exigem de nós autoconhecimento e preocupação com a compreensão dos outros seres humanos; mas, ao mesmo tempo, podem acabar por reforçar em nós tudo isso”.

Ao estudar a trajetória dos intelectuais, é necessário compreender as pressões sociais que atuam sobre o indivíduo. Este foi um esforço presente nos estudos de Thetis Nunes. Não basta apenas produzir uma narrativa histórica, mas, como fez a autora, de certa maneira, elaborar um modelo teórico.

Ela buscou apreender na estrutura os modos através dos quais a sociedade atua sobre o indivíduo, uma vez que, como entendeu, mesmo sendo autônomo o intelectual está subordinado a tal estrutura, posto ser simplesmente impossível para uma pessoa ter uma propensão natural geneticamente enraizada de fazer algo. Ela insistia com os iluministas que o indivíduo é produto do meio e que nada existe na nossa consciência que não haja passado antes pelos sentidos.

Sem dúvida, jornais e revistas foram as principais publicações periódicas, veículos importantes para a difusão e legitimação do discurso dos intelectuais que viveram nos séculos XIX e XX.

O jornal como veículo rápido de notícias, a revista menos sujeita às contingências da rapidez e mais adequada para refletir diferentes aspectos da vida cultural e atender a interesses específicos. Mas, há também trabalhos em anais de eventos científicos dos quais ela participou, e onde divulgou parte dessa produção, além das separatas que produziu.

A maior parte dessas histórias de vida apresentadas por Maria Thetis se pautou em dados que invariavelmente incluíram data e local de nascimento, filiação, prole, formação educacional, profissão, exercício de funções públicas, morte e ideias difundidas. Em Thetis Nunes, os estudos sobre intelectuais cumpriram diversos papéis.

Dentre tais papeis, o de celebração de uma memória que criou vínculos de identidade entre os pesquisadores do tempo presente e autores e obras que atuaram sobre o passado. A partir da discussão que Thetis Nunes fez com e sobre os seus intelectuais, emergiram problemas concernentes à historiografia, à teoria da história que orientou a sua produção.

Nos seus intelectuais, a autora buscou os sentidos da experiência histórica e da vivência dos homens que analisou. Ao verificar essa experiência, ela trabalhou o sentido da construção de um passado glorioso para Sergipe, tentando demonstrar os momentos nos quais intelectuais sergipanos se puseram à frente dos seus pares de outras regiões do Brasil.

Thetis foi explícita em relação a esse tipo de problema ao falar de Tobias Barreto e da defesa que fez este autor em relação aos direitos da mulher. Ou, quando apresentou o trabalho do historiador e político Felisbelo Freire, afirmando que o regimento da instrução pública aprovado por aquele governante do Estado de Sergipe, no período republicano, antecipou a reforma Benjamim Constant, implementada posteriormente a partir do Rio de Janeiro, a capital da nascente República.

Esta era uma discussão ao gosto da historiadora Maria Thetis Nunes. A polêmica a respeito do pertencimento das ideias e a busca incansável das novidades nascidas na periferia.

Maria Thetis Nunes morreu no dia 25 de outubro de 2009, aos 86 anos de idade. Desde o final do século XX, quando a historiadora ainda trabalhava com todo vigor, lançar o olhar investigador sobre a sua obra, vem fascinando vários pesquisadores. Com toda certeza, Maria Nely Santos continua ser a sua principal biógrafa.

O livro de Nely, PROFESSORA THETIS: UMA VIDA é ainda o mais completo estudo biográfico acerca do trabalho da historiadora. Agora, quando se celebram os 100 anos do seu nascimento, é fundamental que tanto a pesquisadora Maria Nely quanto outros estudiosos continuem investigando a trajetória de vida e a produção intelectual de Thetis Nunes. Temos muito a aprender com ela.

 

 

*Jornalista, doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor aposentado do Departamento de História, do mestrado e doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

TRIBUTO A LUCINDA PEIXOTO

      Jorge Carvalho do Nascimento*     Acabei de tomar conhecimento da morte da empresária Maria Lucinda de Almeida Peixoto, ocorrido hoje na cidade de Penedo, Estado de Alagoas. Lucinda era certamente a principal herdeira dos negócios da próspera família Peixoto Gonçalves, empresários que ao longo do século XX constituíram a mais importante e mais rica família da região do Baixo Rio São Francisco, consideradas as duas margens – a de Alagoas e a de Sergipe. Tive a oportunidade de conhecer Lucinda Peixoto no final do ano de 2009, quando iniciei uma pesquisa sobre os negócios da família Peixoto Gonçalves, a convite do seu genro, José Carlos Dalles, um dos principais executivos com responsabilidade sobre a gestão das atividades econômicas da família. Em maio de 2010, fiz uma série de entrevistas e mantive várias conversas com Dona Lucinda, como os penedenses e os seus amigos costumavam tratá-la. Fiquei impressionado com a sua memória que o tempo não conseguira embotar. Do m

CONTRIBUIÇÃO ASSISTENCIAL: REGULAMENTO OU CAOS

                                                    Nilson Socorro       Nilson Socorro*     Nestes tempos bicudos de exacerbação das divergências, de intolerância e de fakes news em profusão, o mundo do trabalho, em especial, o movimento sindical, tem sido permanentemente agitado pela discussão, confusão e desinformação sobre o tema da contribuição sindical. O debate deveria contribuir para a construção de soluções, necessárias, em decorrência da fragilidade das finanças dos sindicatos, golpeadas pela reforma trabalhista de 2017 que abruptamente estabeleceu o fim da obrigatoriedade do imposto sindical. Mas, ao contrário, tem se prestado mais para amontoar lenha na fogueira onde ardem as entidades sindicais profissionais e econômicas que ainda resistem. A Consolidação das Leis do Trabalho trata a contribuição sindical em diversos artigos, assim como, a Constituição Federal. Pelo estabelecido na legislação, são três as espécies de contribuições: a contribuição sindical ou imposto sindic

TRIBUTO A THAIS BEZERRA

      Jorge Carvalho do Nascimento*     Nasci no dia 28 de agosto. Passados 22 anos após o dia em que eu nasci, a mais importante colunista social de toda a história da mídia em Sergipe publicou a sua primeira coluna, GENTE JOVEM, no jornal GAZETA DE SERGIPE, a convite do nosso amigo comum Jorge Lins e sob a orientação do jornalista Ivan Valença, então editor daquele importante periódico impresso. Hoje estou aqui para homenagear a memória de Thais Bezerra. A partir do seu trabalho, dediquei alguns anos da minha vida à pesquisa e me debrucei a estudar o fenômeno da coluna social em Sergipe, inspirado pelo meu olhar curioso e pelas observações que sempre fiz a respeito do trabalho da jornalista inspiradora que ela foi.       O estudo, inicialmente dedicado ao trabalho de Thais Bezerra se ampliou, e no início do ano de 2023, resultou na publicação do livro MEMÓRIAS DO JORNALISMO E DA COLUNA SOCIAL, pela Editora Criação.   Thais Bezerra começou a trabalhar aos 17 anos de