Jorge
Carvalho do Nascimento*
No
final dos anos 80 do século XX fui presenteado pelo amigo médico Antônio
Samarone com um exemplar do livro A LÓGICA DA VIDA, de autoria do biólogo francês
François Jacob. A leitura me impactou muito e me fez compreender algumas coisas
que o meu exíguo conhecimento em ciências biológicas não me permitia ver.
Jacob
trata da hereditariedade e do processo da reprodução dos seres vivos. Com ele
aprendi muito sobre a progressividade das transformações e de que modo,
efetivamente, a morte é a realização da vida, a sua etapa mais importante, a
alteração mais profunda do estado da matéria.
Percebi
os fundamentos dos versos cantados pelo poeta Vinicius de Morais refletindo
sobre tal processo: “Tem dias que eu fico pensando na vida/E sinceramente não
vejo saída/Como é por exemplo que dá pra entender?/A gente mal nasce, começa a
morrer”. Ou a reflexão filosófica de Gilberto Gil na oposição homem X
inteligência virtual: “Eu posso decidir/Se vivo ou morro por que/Porque sou
vivo/Vivo pra cachorro e sei/Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro/No meu
caminho inevitável para a morte/Porque sou vivo/Sou muito vivo e sei/Que a
morte é nosso impulso primitivo e sei”.
Diante
da morte, a polidez, a civilidade. Na minha infância, acompanhei a minha avó
Petrina algumas vezes à sua Macambira, cidade natal, onde ela ia chorar os seus
mortos, dar o último adeus, acompanha-los à última morada, carpir o defunto.
Todas as sociedades, de alguma forma, fazem da morte um acontecimento social. A
oportunidade de prantear, de homenagear, de pôr em evidência as qualidades de
quem se vai.
Acompanhei
meu pai e a minha avó Maria, algumas vezes, a Indiaroba, com o mesmo objetivo.
Frequentava-se o velório da mesma maneira que era necessário comparecer a
residência dos amigos para tomar a meladinha pelo nascimento do filho, pelo
batizado, pelos 15 anos, pelo noivado, pelo casamento. Como nos demais eventos,
a morte era uma espécie de última festa da vida. Até recentemente, não ir ao
velório e não respeitar o luto em face da partida da mãe, do pai, dos filhos,
dos avós, dos irmãos, dos tios, do marido, da esposa, dos amigos, era um
verdadeiro sacrilégio.
Velar
os mortos sempre foi, assim, um traço de civilidade. Aquele conjunto de formalidades,
de palavras, de atos que os cidadãos, em nome da decência, adotam entre si
demonstrando o respeito mútuo, as boas maneiras, a polidez. Talvez por entender
assim, não consigo disfarçar a minha estupefação diante de alguns homens e
mulheres da elite do esporte brasileiro.
Edson
Arantes do Nascimento, o Rei Pelé, pautou sua vida com base na civilidade, na
polidez, na gentileza. Foi o nome e o dono do rosto brasileiro mais reconhecido
em todo o planeta, desde a metade do século XX. Verdadeiramente imortal. Como
muito se disse nos últimos dias, morreu o Edson. Pelé é imortal.
Edson
morreu na cidade de São Paulo na última quinta-feira, 29 de dezembro de 2022.
Foi sepultado nesta terça-feira, três de janeiro de 2023, na cidade de Santos.
Seis dias entre o momento em que seu coração parou de bater e aquele outro no
qual uma laje de cimento o isolou na escuridão daquilo que se costuma chamar de
última morada, o espaço no qual a carne do corpo é entregue à sanha
transformadora dos micro-organismos que realizam a tarefa para os que decidem
não arder nos fornos crematórios.
Tempo
suficiente para o presidente da Federação Internacional de Futebol Association –
FIFA, Gianni Infantino, se deslocar de Genebra, na Suiça, para a cidade de Santos,
no Brasil, unicamente para homenagear o maior atleta de futebol de todos os
tempos, aquele mesmo que o Comitê Olímpico Internacional elegeu como o maior
atleta da história mesmo sem ter ele disputado uma única vez os jogos
Olímpicos.
Intervalo
de tempo necessário para o presidente da Confederação Sul-Americana de Futebol –
Conmebol, Alejandro Dominguez, viajar desde Assunção no Paraguai para ir até a
Vila Belmiro, o estádio do Santos Futebol Clube, juntamente com Ednaldo
Rodrigues, presidente da Confederação Brasileira de Futebol, onde as exéquias
do Rei Pelé foram realizadas. O presidente Lula, com a apertada agenda do
segundo dia de governo, lá esteve.
Tempo
de sobra para que o povo brasileiro e vários estrangeiros que foram ao velório demonstrassem
o seu apreço pelo Rei do futebol e para que os grandes craques daquilo que os locutores
esportivos chamavam de esporte bretão, bem como os atletas dos demais esportes
demonstrassem que a polidez morreu.
São
inaceitáveis a omissão dos silenciosos (mensagens postadas em redes da internet
são meras formalidades desprovidas de conteúdo e sentimentos) e as desculpas
cínicas dos que em um dia estavam na esbórnia das festas parisienses e na manhã
seguinte inventaram narrativas esfarrapadas justificadoras da sua ausência de
humanidade diante da morte daquele que no passado diziam amar e tomar como
exemplo.
A
endinheirada elite do futebol e dos muitos esportes brasileiros se omitiu
diante da morte do rei do futebol. Como de repente apareceram tantos
compromissos que impediram os principais nomes do futebol brasileiro e dos
demais esportes de comparecer ao velório? Como explicar as ausências de quase
todos os presidentes dos principais clubes de São Paulo e do Rio de Janeiro?
O
que dizer do comportamento de Neymar e de todos os craques milionários e proprietários
de jatinhos que disputaram a última copa do mundo de futebol e lá não
compareceram? Aqueles mesmos das dancinhas e dos cabelos entintados. Nenhum foi
a Vila Belmiro, Como explicar a postura do omisso Tite diante da morte de um
ídolo como Edson Arantes do Nascimento?
Por
que lá não estavam os penta e os tetra campeões mundiais de futebol do Brasil?
Aqueles mesmos que compareceram aos restaurantes de luxo do Catar, tem poucos
dias, comendo caríssimos bifes temperados com pó de ouro. Onde estavam as
premiadas meninas da seleção brasileira de futebol feminino?
Enfim,
onde estás tu, civilidade? Onde anda você, polidez? Ninguém é obrigado a ir ao enterro de ninguém. Contudo, a ausência em um momento como este é muito eloquente em relação a qualidade de ser humano é quem se ausenta.
O
Rei morreu!
*Jornalista,
professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e
presidente da Academia Sergipana de Educação.
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