Milton
Alves*
De
repente, um Opala amarelo para bruscamente no cruzamento das Ruas Permínio de
Souza e Nossa Senhora das Dores, bairro Cirurgia. Dentro do carro somente um
ocupante, de quem ouvi o anuncio/advertência: “camarada Mílton Alves, os
companheiros estão sendo presos, não sabemos para onde estão sendo levados nem
por quem”. E seguiu: “cuide-se e não saia de casa”.
O
anuncio das prisões e o conselho foram do então deputado estadual Jackson
Barreto (MDB), que viria a ser governador de Sergipe. Eu conversava com um
grupo de amigos, todos sentados num degrau de entrada do Bar de ¨Seu¨ Dinho –
que não mais existe. Os amigos ficaram sem entender o enigmático anuncio.
Estávamos
a nos preparar para o sábado de Carnaval, dia do Desfile do Bloco de Sujos, já
não acontece, que saia do Bairro Suíssa, passava pelo Bairro Cirurgia e
encerrava o cortejo carnavalesco no Centro de Aracaju.
Atendi
o conselho. Em casa, minha mãe vendo-me cabisbaixo e silencioso, perguntou: O
quê houve? Algum problema? Não, nada. Tudo bem – respondi secamente e
recolhi-me ao quarto. Os dias seguintes foram de terror - sequestros, prisões e
torturas. Estava em curso a Operação Cajueiro.
Na
função de correspondente do Jornal da Bahia, me encontrei com o jornalista
Paulo Barbosa de Aracaju (já falecido), então correspondente do jornal O Estado
de São Paulo. Trocamos poucas palavras, suficientes para a confirmação de que
militantes do Partido Comunista Brasileiro, PCB, estavam sendo sequestrados.
Não
se sabia muita coisa. Nas redações dos jornais, emissoras de rádio e de
televisão nenhuma informação. Discutia-se o início do campeonato sergipano de
futebol e se marcavam encontros no Iate Clube, Associação Atlética, Cotinguiba
e Vasco – principais clubes sociais que ofereciam a sócios e convidados grandes
bailes de Carnaval.
Na
semana que antecedeu a festa popular, os sequestros se sucederam em escala.
Como não eram de Sergipe, os militares gritavam o nome dos alvos das prisões e
estes sentiam bruscamente sobre os olhos uma fenda de borracha. Não sabiam para
onde estavam sendo levados.
Foi
gritante o silêncio da imprensa em Sergipe sobre as prisões. Paralelamente, as
notícias chegavam para os jornalistas que trabalhavam para jornais sediados em
Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Os presos estavam incomunicáveis nos
porões do 28º Batalhão de Caçadores. A tropa federal de Sergipe havido sido
dispensada, substituída por outra enviada da Bahia.
Pelas
ruas centrais de Aracaju, os foliões compravam adereços para a festa de
Carnaval e ensaiavam sucessos musicais: oh, jardineira por que estás tão
triste. Depois de analisarmos com detalhe as informações que tínhamos, eu e
Paulo concluímos que os dados eram suficientes para denunciarmos os sequestros,
as prisões e as torturas.
Vaza
o nome da Operação Cajueiro: alusiva à terra dos Cajus, Sergipe. O jornal O
Estado de São Paulo e o Jornal da Bahia quebraram o silêncio e a
incomunicabilidade dos presos, rompendo a cortina sobre aquele período escuro
da história da política brasileira. As notícias do “Estadão” eram identificadas
como sendo transmitidas por “enviados especiais” e as do Jornal da Bahia “da
Sucursal em Aracaju”.
O
clima de medo se estabeleceu. Eu e Paulo Barbosa fomos tomados por esse
sentimento. Sabíamos dos riscos, tínhamos ligações pessoais e ideológicas com aqueles
que estavam sendo sequestrados e torturados, mas era preciso denunciar a
Operação Cajueiro - justificada pelo comando opressor como necessária para
impedir que a célula do Partido Comunista Brasileiro, fincada em Sergipe,
organizasse uma ofensiva para derrubar o Governo Militar, imposto pelo golpe de
1964, quando o Brasil passou a viver, até 1985, uma Ditadura.
Para
reforçar a tropa federal enviada da Bahia, uns poucos militares do 28º BC
permaneceram no quartel e outros foram convocados da Marinha e da Polícia
Militar. Os presos sentiram cheiro do estábulo da guarnição federal e sem as
fendas nos olhos confirmaram o local.
Os
dias iam se passando, aumentando o desespero dos familiares dos presos
políticos. Nas redações dos jornais, emissoras de rádio e de televisão a
ignorância do fato não se alterou. Os correspondentes de O Globo, Paulo
Fernando Morais, e do Jornal do Brasil (extinto), José Carlos Góes Montalvão,
se somaram na luta para denunciar os sequestros, prisões e torturas que
marcaram a Operação Cajueiro.
José
Carlos Montalvão que acumulava as funções de correspondente do Jornal do Brasil
e a de diretor de redação da Tribuna de Aracaju (hoje, Correio de Sergipe)
tentou emplacar uma pequena nota no matutino sergipano, mas foi repreendido
pelo então dono da empresa Heráclito Rollemberg (à época, deputado estadual da
Arena): “queres me criar problema”?
Era
preciso vencer o medo. Por um tempo, íamos às lojas na Rua João Pessoa (e até
ao Cinema Palace, já extinto) solicitar o telefone para falar com nossas
residências – na verdade, fazíamos ligações para os jornais, e as redações
sabiam. Havia sempre um funcionário para ligar gravadores para facilitar com
mais precisão e rapidez a transmissão dos textos.
O
jornal Estado de São Paulo mantinha um telex instalado numa pequena sala do
mezanino do prédio do Cinema Palace. Composição de textos e transmissão era à
base da luz do aparelho para evitar suspeitas. Quando íamos embora, o caminho
nunca era o mesmo: cada um numa direção diferente.
Passivamente
a imprensa de Sergipe continuava silenciosa. Nos porões do 28º Batalhão de
Caçadores as torturas se multiplicavam. Frágeis, os presos políticos eram
levados para interrogatórios, para acareações e ameaçados: filho da puta, diga
o que sabes ou vais morrer! Quem está pagando os comunistas? – uma pergunta que
se fez variadas vezes.
O
silêncio como resposta irritava os torturadores que reagiam com tapas, chutes,
choques elétricos e sucessivas ameaças contra a vida dos presos, considerados
perigosos para a segurança nacional, e até dos familiares. Houve ordem superior
para que as sessões de torturas fossem “qualificadas”.
O
país já sabia da Operação Cajueiro em Sergipe. Os relatos dos familiares dos
presos políticos eram angustiantes. No 28º BC se formou uma fortaleza e nenhuma
informação dali poderia sair. Mas essa fortaleza ruiu pelos relatos dos
familiares que enriqueceram os textos-denúncias dos correspondentes.
Houve
momentos de muita tensão quando a notícia sobre o estado de saúde do
ferroviário Pedro Hilário vazou. No quartel, os presos políticos ficaram
aflitos. Do lado de fora, eram os familiares a esperar por uma notícia que os
acalmasse, muito embora soubessem ser difícil diante dos relatos dos bárbaros
tipos de tortura.
Depois
de sucessivas sessões de maus-tratos, os médicos indicaram que o ferroviário
estava bastante debilitado e a pressão arterial tinha alcançado níveis
preocupantes. Não poderia morrer nos porões do 28º Batalhão de Caçadores. Os
militares que comandavam a Operação Cajueiro decidiam colocar Pedro Hilário em
liberdade. Ele morreu dias depois, em casa, ao lado dos familiares.
Com
avalanche de notícias sobre as torturas – as mais cruéis possíveis – dentro de
uma guarnição federal, denunciadas pela imprensa nacional, o então comandante
da 6ª Região Militar general Fiúza de Castro – um militar da linha dura do
Exército – desembarcou surpreendentemente em Aracaju. Incisivamente ele negou
as torturas, jurou que as prisões foram legais, com base na Lei de Segurança
Nacional. Ao deixar Aracaju, os maus-tratos recrudesceram. Teria ordenado:
“continuem com o bom serviço”.
A
cidade já brincava o Carnaval. Por ordem militar, a Gazeta de Sergipe, na
edição de dia 29 de fevereiro de 1976, um domingo, estampou em manchete de
primeira página: “Advogado preso aconselha juventude abominar comunismo”.
Referiu-se à carta assinada (sob ameaça) pelo preso político Wellington Dantas
Mangueira Marques, que renunciava ao comunismo e igualmente ao uso da maconha.
O
jornal publicou na página 8, daquela edição, integralmente a carta, distribuída
pelo comando da 6ª Região Militar. Wellington Mangueira nunca renunciou ao
marxismo e jamais fumou um simples cigarro. Na edição, página 6, o jornal
informou numa nota de sete linhas, na Coluna Informe GS, que “pelo noticiário
da imprensa do Sul do país, tomou-se conhecimento que aqui esteve, mesmo na
quinta-feira, o comandante da 6ª Região Militar, general Fiúza de Castro, e o
chefe de Relações Públicas, major Alcântara”.
Eu
e Paulo Barbosa estávamos sentados num banco da Praça Almirante Barroso, que
fica entre o Palácio Museu Olímpio Campos (antiga sede do Governo de Sergipe) e
a Escola Legislativa (antiga sede da Assembleia Legislativa), centro de
Aracaju. Discutíamos a pauta sobre a Operação Cajueiro, quando se senta ao lado
João Moreira (João Banha), ligado ao Serviço Nacional de Informações (SNI).
Dirigiu-se
a Paulo Barbosa e perguntou: “quem são os enviados especiais do “seu” jornal, O
Estado de São Paulo?”. Calmo, Paulo Barbosa respondeu: “não sei”, e
acrescentou: “o jornal quando quer informações sem colocar seus repórteres em
risco, nada avisa”. E o Jornal da Bahia, onde fica a sucursal? Encarou-me, e
respondi com outra pergunta: “e tem?”
João
Moreira era um homem do SNI com quem jornalistas conversavam rotineiramente com
ele (estava sempre vagueando pelos corredores do Palácio do Governo), mesmo
porque muitos foram alunos da esposa dele, a professora Maria Augusta Lobão –
ensinava História.
Quando
os presos políticos começaram a ser colocados em liberdade, com a riqueza de narrativas
sobre os sequestros, prisões e torturas, a descoberta e sentimento de dor com a
confirmação de que Milton Coelho havia ficado cego. A imprensa de Sergipe
manteve o silêncio – para ela, nada havia ocorrido no estado.
Livre,
o ex-preso político Marcélio Bonfim, numa frase resume, ainda hoje, o papel dos
correspondentes: “a Paulo Barbosa e a Mílton Alves devemos vidas, quando
denunciaram as prisões e quebraram nossa incomunicabilidade”. Conversar sobre a
Operação Cajueiro emociona quem viveu aqueles dias de terror.
Faz
47 anos, neste dia 20 de fevereiro de 2023, e não podemos esquecer ou negar a
História. Num momento histórico, o então governador de Sergipe Jackson Barreto
instalou a Comissão da Verdade e a batizou de “Paulo Barbosa de Araújo”,
falecido em 2000. “O que se quer é resgatar as verdades de um período repleto
de lacunas na História de Sergipe e do Brasil, a Ditadura Militar”, explicou,
com acréscimo: - A Comissão da Verdade não tem caráter revanchista, não é o
ódio que a conduz, mas é preciso esclarecimentos dos fatos para guardar na
História, para que as novas gerações, de forma profunda, tomem conhecimento do
que aconteceu em Sergipe.
Jackson
Barreto apontou, à época, que “quando reencontrarmos os companheiros e
relembrarmos tudo que enfrentamos, diremos, sempre: valeu! Digo de coração
aberto, o que fizemos pela democracia e liberdade faríamos novamente”. À frente
dele, naquela oportunidade, estavam sequestrados, presos e torturados durante a
Operação Cajueiro e uma observação: desta vez, pelo menos, a imprensa de
Sergipe não silenciou. Os depoimentos tomados pela Comissão da Verdade estão em
livro editado pela Editora Diário Oficial de Sergipe (Edise), no formato
e-book, para leitura gratuita.
*É jornalista profissional desde dezembro de 1969 e assistente social graduado pela Universidade Federal de Sergipe desde 1982. Foi fundador e presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de Sergipe, do Sindicato dos Assistentes Sociais de Sergipe e do Conselho Regional dos Assistentes Sociais de Sergipe. Trabalhou como correspondente do jornal “O Globo” (1978-1994), da revista “Visão” (1977-1980) e do “Jornal da Bahia” (1975-1978). É Diretor Técnico da Empresa Pública de Serviços Gráficos do Estado de Sergipe - Segrase (Imprensa Oficial).
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