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A PERERECA


  

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

Os 114 degraus revestidos com cimento crespo da igreja de Monte Santo eram uma espécie de “Disneylândia” dos romeiros devotos do beato Antônio Conselheiro. Nos sábados e domingos lá estavam beatos, beatas, mocinhas casadoiras, viúvas esperançosas, enfim todo um sortido de exemplares da fauna humana que chegava de longe e de perto, uns tantos para fazer pedidos e promessas e outros para depositar ex-votos.

O padre Barata coçava a cabeça a cada novo ex-voto, principalmente os de maior volume. Reproduções de perna inteira em tamanho real, de troncos e colunas vertebrais de pessoas curadas pela graça do beato. Não havia mais espaço na pequena capela para guardar tanta coisa.

Sábado e domingo não cabia tanta gente na Igrejinha. Os romeiros se ajoelhavam no primeiro degrau e subiam a longa escadaria contando um a um os obstáculos que esfolavam lentamente os joelhos dos que se dispunham a subir. Alguns intensificavam o sofrimento e carregavam na cabeça feixes de lenha, paralelepípedos, potes cheios d’água ou familiares paraplégicos sobre os ombros.

Entrar na capela com os joelhos sangrando era uma espécie de troféu que demonstrava ser aquele um romeiro de muita fé. Deixar um pouco do couro da rótula em cada um dos degraus era o máximo. Os mais devotos se compraziam observando o rastro de sangue que os seus joelhos imprimiam no mosaico de ladrilhos, da porta da capela até o altar.

Duas missas pela manhã, duas pela tarde, duas à noite levavam à exaustão o pobre Padre Barata. Pobre pelo excesso de trabalho. As peregrinações até que rendiam bons trocados aos cofres da capela. O padre, zeloso, de tudo prestava conta beneditinamente ao bispo da sua Diocese e ao conselho de paroquianos.

De segunda a sexta-feira tudo ficava deserto, a não ser que houvesse um feriado em algum dos dias. Além da capela de Monte Santo, o Padre Barata cuidava também da Igreja de Cansanção, onde morava. Sem movimento, a capela de Monte Santo e os seus 114 degraus ficavam completamente desertos.

Os meninos e adolescentes adoravam a semana sem romeiros. Subiam as escadas carregando patinetes, carrinhos de rolemã e empurrando as suas bicicletas. Apostavam corridas escadaria abaixo. Melquisedec era o campeão. Na sua bicicleta Merck Suisse era o imbatível recordista de velocidade, descendo os 114 degraus cimentados em tempo recorde.

Mesmo com toda a sua notória habilidade, num desses torneios de descida em alta velocidade, um gato ligeiro atravessando os degraus foi o obstáculo posto à roda dianteira da Merck Suisse de Melquisedec. Foram duas cambalhotas no ar e a cara do ousado ciclista aterrissando diretamente no cimento da escadaria.

Escoriações em todo o rosto. Nariz e lábios cortados. Perdidos para sempre quatro dentes incisivos superiores (dois centrais e dois laterais). A vaidade de Melquisedec se esvaindo em sangue. A roda dianteira da bicicleta definitivamente entortada. O veículo de duas rodas condenado ao repouso por um bom tempo.

Mesmo sem nunca haver frequentado nenhuma instituição formadora de odontólogos, o protético de Monte Santo era o chamado doutor Fonseca. A ele coube resolver o problema da fachada do ciclista. Fez a assepsia, retirou os fragmentos de dente e raiz restantes, obteve o molde da arcada dentária do novo banguela e encaminhou tudo ao amigo Alce Barbuda, o melhor fabricante de “pererecas” da cidade de Euclides da Cunha, distante 38 quilômetros de Monte Santo.

Menos de 15 dias depois, Melquisedec já ostentava o seu novo sorriso, com dentes branquinhos, todos do mesmo tamanho, quase um teclado de piano alemão da marca Fritz Dobert. A dentadura chegou na hora certa. O rapaz, aos 13 anos de idade, estava mudando para o Aprendizado Agrícola de Sergipe, onde cursaria o ensino médio e preparar-se-ia para ingressar na faculdade e buscar o desejado diploma de engenheiro agrônomo.

O doutor Melquisedec Amado Pinto, 11 anos depois da queda de bicicleta, era um jovem e bem sucedido engenheiro agrônomo lotado no gabinete do secretário da Agricultura do Estado da Bahia. O seu pai, Amazonas Pimpão Pinto e a sua mãe, América Amoroso Pinto, pequenos sitiantes em Monte Santo, não cabiam em si de orgulho do rebento inteligente.

O vaidoso Melquisedec tinha em Amin Santana Manso, que conhecera no curso de Agronomia, o seu melhor amigo e namorava Aricléia, a irmã deste, jovem advogada, também recém-formada. Todos felizes e confiantes no futuro que estavam plantando e garantindo.

Amin havia acabado de construir uma casa na ainda deserta praia de Caixa Prego, Ilha de Itaparica. Para o primeiro final de semana na casa, levou a tiracolo o amigo Melquisedec. Chegaram pouco antes do almoço e se entregaram aos prazeres de baco. Empalagados de vinho, um caiu no sofá e outro no tapete da sala, por volta das três da madrugada e dormiram.

Nove da manhã de domingo, sentados à mesa do café, como bons nordestinos. Cuscuz de milho ralado com leite de coco, carne de sol, café quente, moqueca de carimã, pães, queijo coalho, manteiga. Refestelados e prontos para um dia de praia. Melquisedec no banheiro, retira a perereca da boca e a escova diante do vaso sanitário.

Outra vez, um gato. Este entra no banheiro correndo para alcançar a janela em um único salto e sair terreiro afora.  O choque com o braço de Melquisedec é suficiente para derrubar a perereca no popular chamados pelos nordestinos de Laurindo Boca Aberta. O amigo Amin chega e diz: coloque a mão aí dentro e recupere sua perereca para não ficar banguela e estragar o nosso passeio.

Enojado, o banguela enfia a mão no vaso e, nervoso, toca a prótese, empurrando-a vaso adentro. Outra vez, uma boa ideia de Amin: a casa é nova, vou retirar a tampa da fossa e você dá descarga. Coloca uma pá no cano de saída de líquidos e dejetos para o tanque de matéria orgânica. Finalmente, sobre a pá, um punhado de material de produção recente misturado com a perereca.

Prótese lavada com água e sabão, bem fervida e devidamente recolocada na boca por volta das 10 horas, quando Aricleia chegou para o passeio de barco. Depois de um beijo tórrido do casal de pombinhos em arrulho, Amin, o cunhado sem caráter, revela à própria irmã a epopeia de recuperação da prótese. Uma tragédia.

Melquisedec casou com Ava Seleida, médica veterinária da Secretaria da Agricultura baiana.

 

 

*Jornalista, doutor em História da Educação, professor do Departamento de História, do Mestrado em História e do Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. É membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

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