Pular para o conteúdo principal

LONGA É A ARTE...

                                               Mirian Warde


 

 

Jorge Carvalho do Nascimento*

 

 

É do médico e arquiteto grego Hipócrates o aforismo latino que nos ensina ser breve a vida e longa a arte. O aforismo foi popularizado pelo poeta romano Sêneca. Contemporaneamente, poetas como o maestro Antônio Carlos Jobim, buscaram no mote inspiração para fazer música: “Breve é a vida/De breve flores/Na despedida/Longa é a dor do pecador”.

Em 1994, a minha querida amiga Mirian Jorge Warde passou 15 dias no meu apartamento da Beethovenstrasse, em Frankfurt, na Alemanha. Eu cumpria o meu estágio de doutorado sanduiche na Johann Wolfgang Göethe Universtät-Frankfurt am Main e Mirian era, então a orientadora dos meus estudos de doutoramento na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Durante a estada de Mirian em minha casa, ouvíamos Jobim quase o dia inteiro em um pen drive que ela levou para me presentear.

Ela fora a Frankfurt convidada pelo meu orientador na Alemanha, Patrick, com o objetivo de oferecer um minicurso sobre História da Educação e História Cultural. Passou exatamente cinco dias em Frankfurt. Os outros 10 dias consumimos rodando pelas estradas alemãs num carro que alugamos em sociedade. Enquanto estivemos em Frankfurt, Tom Jobim era ouvido o dia inteiro na minha casa. Durante os 10 dias de viagem ele foi a trilha sonora que nos animou na estrada.

Éramos então duas pessoas maduras que amavam a vida. Mirian estava se aproximando dos 50 anos de idade e eu beirava os 40. Era indisfarçável a minha admiração intelectual e afetiva pela professora. Ela marcou a minha vida e a minha carreira acadêmica. Se não devesse nada mais, a Mirian eu seria devedor, como sou, dos estímulos acadêmicos que recebi para a obtenção dos meus títulos de Mestre e Doutor em Filosofia e História da Educação.

A conheci em 1984. Ela havia acabado de defender o seu doutoramento em Educação, na PUC de São Paulo, sob a orientação do doutor Dermeval Saviani. Antes mesmo da sua defesa de tese, Saviani levou Mirian à nossa sala de aula para palestrar. Frequentávamos um curso que ele oferecia sobre o impacto do pensamento do filósofo Antônio Gramsci e Mirian era sua assistente na PUC.

Ela integrou um grupo de orientandos de Dermeval Saviani que impactou os estudos e modificou o discurso sobre as ideias filosóficas e a História da Educação Brasileira. Um grupo que obteve grande reconhecimento nas duas últimas décadas do século XX, do qual participavam intelectuais como Carlos Roberto Jamil Cury, Neidson Rodrigues, Luiz Antônio Rodrigues da Cunha, Guiomar Namo Melo, Teresa Roserley Nebauer Silva, José Carlos Libâneo, Selma Garrido Pimenta e tantos outros.

Eu era aluno do mestrado, enquanto aquele grupo concluía o doutorado e conquistava os espaços de influência nos debates sobre Filosofia e História da Educação no Brasil. Eu havia ingressado no mestrado em 1982 e era até então orientando da doutora Maria Luiza Santos Ribeiro. À época, um mestrando dispunha de três anos para concluir o curso.

Mirian Warde foi admitida como professora daquele programa no mês seguinte à sua defesa de tese de doutoramento. Imediatamente a procurei e fui um dos primeiros a seguir na vida acadêmica sob a orientação da jovem doutora. Lembro bem que a mesma opção foi feita por Carlos Monarccha que viria a se transformar em um importante nome da pesquisa sobre História da Educação Brasileira.

Concluí o Mestrado, prestei concurso público e fui trabalhar na Universidade Estadual de Maringá, no Estado do Paraná, antes de ser concursado e admitido na carreira docente da Universidade Federal de Sergipe. Desde que passei a viver academicamente sob a orientação de Mirian Warde, minha capacidade de olhar e ver os fenômenos da Educação mudou radicalmente.

Mirian foi a mais fascinante das figuras que pude conhecer na vida intelectual. Mulher inteligente, de pensamento ancorado em sólidas ideias, capaz de expor suas teses  e fragilizar a contra argumentação dos que a ela se opusessem, era uma professora e orientadora dura e enérgica, capaz de mandar um seu orientando refazer o mesmo texto, cinco, seis, oito vezes, até que ela considerasse haver o trabalho avançado em qualidade.

O seu discurso era sedutor. Mas, também sedutor era o seu comportamento de mulher bonita e elegante, que fumava avidamente (o que contribuiu para enfermá-la e tirar-lhe a vida) e deixava marcas indeléveis do acentuado batom vermelho nas pontas de cigarro que acendia um após o outro.

Voltei a encontrar Mirian em 1993, quando ingressei no doutorado em Educação da PUC de São Paulo. Outra vez ela foi a minha orientadora. Como no mestrado, os meus ganhos não foram apenas acadêmicos. Voltamos a conviver também socialmente. Frequentávamos bares e restaurantes juntos.

Do grupo de orientandos que ela costumava convidar para os momentos de lazer, eram sempre presentes Maria Rita de Almeida Toledo, Bruno Bontempi Junior, Fernando Casadei, Lúcia Franca Rocha, Olinda Evangelista e outros tantos. Em 1997, defendi tese, mas não perdi o contato com a professora.

Com ela, já doutor, negociei um convênio Procad-CAPES que me permitiu selecionar e formar, na PUC de São Paulo, 10 doutores em História da Educação ligados à Universidade Federal de Sergipe e a Universidade Tiradentes. Os participantes de tal programa figuram hoje dentre os nomes mais importantes da pesquisa em História da Educação no Estado de Sergipe.

Hoje, fui surpreendido com a informação de que a brevidade da vida tirou do nosso convívio a professora Mirian Warde. Perdi a professora que mais me influenciou, me impressionou e encantou dentre todos os docentes que cruzaram o caminho da minha carreira acadêmica.

A vida de Mirian se foi. A arte da sua pesquisa, a sua produção acadêmica, ficam eternizadas. Em mim ficam mesclados os sentimentos de gratidão e perda por uma das pessoas que mais teve responsabilidade no processo que me formou intelectualmente e, também por contribuir para que eu ganhasse muito em civilidade.

Siga em paz, Mirian Warde. Tão breve a vida...

 

 

*Jornalista, professor aposentado do Departamento de História da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.

                                                      



 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

TRIBUTO A LUCINDA PEIXOTO

      Jorge Carvalho do Nascimento*     Acabei de tomar conhecimento da morte da empresária Maria Lucinda de Almeida Peixoto, ocorrido hoje na cidade de Penedo, Estado de Alagoas. Lucinda era certamente a principal herdeira dos negócios da próspera família Peixoto Gonçalves, empresários que ao longo do século XX constituíram a mais importante e mais rica família da região do Baixo Rio São Francisco, consideradas as duas margens – a de Alagoas e a de Sergipe. Tive a oportunidade de conhecer Lucinda Peixoto no final do ano de 2009, quando iniciei uma pesquisa sobre os negócios da família Peixoto Gonçalves, a convite do seu genro, José Carlos Dalles, um dos principais executivos com responsabilidade sobre a gestão das atividades econômicas da família. Em maio de 2010, fiz uma série de entrevistas e mantive várias conversas com Dona Lucinda, como os penedenses e os seus amigos costumavam tratá-la. Fiquei impressionado com a sua memória que o tempo não conseguira embotar. Do m

CONTRIBUIÇÃO ASSISTENCIAL: REGULAMENTO OU CAOS

                                                    Nilson Socorro       Nilson Socorro*     Nestes tempos bicudos de exacerbação das divergências, de intolerância e de fakes news em profusão, o mundo do trabalho, em especial, o movimento sindical, tem sido permanentemente agitado pela discussão, confusão e desinformação sobre o tema da contribuição sindical. O debate deveria contribuir para a construção de soluções, necessárias, em decorrência da fragilidade das finanças dos sindicatos, golpeadas pela reforma trabalhista de 2017 que abruptamente estabeleceu o fim da obrigatoriedade do imposto sindical. Mas, ao contrário, tem se prestado mais para amontoar lenha na fogueira onde ardem as entidades sindicais profissionais e econômicas que ainda resistem. A Consolidação das Leis do Trabalho trata a contribuição sindical em diversos artigos, assim como, a Constituição Federal. Pelo estabelecido na legislação, são três as espécies de contribuições: a contribuição sindical ou imposto sindic

TRIBUTO A THAIS BEZERRA

      Jorge Carvalho do Nascimento*     Nasci no dia 28 de agosto. Passados 22 anos após o dia em que eu nasci, a mais importante colunista social de toda a história da mídia em Sergipe publicou a sua primeira coluna, GENTE JOVEM, no jornal GAZETA DE SERGIPE, a convite do nosso amigo comum Jorge Lins e sob a orientação do jornalista Ivan Valença, então editor daquele importante periódico impresso. Hoje estou aqui para homenagear a memória de Thais Bezerra. A partir do seu trabalho, dediquei alguns anos da minha vida à pesquisa e me debrucei a estudar o fenômeno da coluna social em Sergipe, inspirado pelo meu olhar curioso e pelas observações que sempre fiz a respeito do trabalho da jornalista inspiradora que ela foi.       O estudo, inicialmente dedicado ao trabalho de Thais Bezerra se ampliou, e no início do ano de 2023, resultou na publicação do livro MEMÓRIAS DO JORNALISMO E DA COLUNA SOCIAL, pela Editora Criação.   Thais Bezerra começou a trabalhar aos 17 anos de