Jorge
Carvalho do Nascimento*
Entregue
a devaneios, meu imaginário posta-se agora diante da caverna que guarda os
mitos e as lembranças da minha consciência cada vez mais esmaecida. É cada dia
mais forte o temor de que o alemão decida roçar por perto e apague os registros
dos meus arquivos, não importando o fato de serem estes recônditos ou entrantes
que ainda tateiam em busca dos melhores caminhos.
Agora,
diante das chamas que turbam o foco das imagens me vejo na infância. Pouco
importa se são seis, sete ou oito anos de idade. Não acrescenta nada saber se o
diploma de Doutor do ABC que se entregava era o meu, o da minha irmã Conceição ou
o de Helder, irmão meu que foi convocado à prestação de contas do juízo final
ainda muito jovem.
Nítida
é a voz do locutor que faz as vezes de mestre de cerimônias no edifício do
Educandário Roberto Simonsen, na avenida Minas Gerais, próximo ao Hospital
Santa Izabel. “Convido para tomar assento à Mesa Diretora dos Trabalhos o
industrial Luciano Vieira do Nascimento, presidente da Federação das Indústrias
do Estado de Sergipe. Convido também a professora Altair Leite Melo, Diretora
do Educandário Roberto Simonsen”.
Eu,
menino curioso que começava a descobrir o mundo, ou os muitos mundos, os sadios
e os imundos, impressionado ficava com o bem cortado terno azul marinho em
gabardine que vestia o industrial Luciano. Os sapatos pretos bem engraxados
pareciam espelhos de opacidade transparente. Da mesma maneira chamava a atenção
o caimento do vestido de seda preto estampado em petit pois branco
trajado pela professora Altair com o seu porte elegante. E o que dizer do bonito
Scarpin em couro azul marinho que adornava os pés da mestra, dando-lhe a distinção
própria à nobreza.
Mas,
não apenas a indumentária era impressionante. Cada palavra cortava os liames da
ignorância do menino e ficavam impressas como ferro quente em couro de boi no
acervo vocabular que o perseguiria até a idade na qual falta menos tempo a
viver do que a quantidade de anos já vividos.
Palavras
simples, como industrial. Escutar tal vocábulo era quase como ser apresentado a
um semideus que deve ser visto, admirado e jamais tocado. Do acervo de signos
da língua de Camões e Machado de Assis, uma marca se impunha: Mesa Diretora.
Mesa Diretora instila força, poder, autoridade. Os que a ocupam são seres
postos acima da planície na qual literalmente rastejam os pobres mortais comuns.
Mesa
Diretora da Solenidade é o centro absoluto do poder. Disfarça-se sob a forma de
colegiado, mas há um dirigente máximo que tudo vê e tudo comanda por si ou
pelos olhares de uma horda de assessores que lhe municiam de informações
enquanto a função é representada.
No
Grupo Escolar Ivo do Prado e no Grupo Escolar General Valadão, as solenidades
continuavam a ser comandada pelas mesas diretoras. No Colégio Costa e Silva, no
Atheneu, na Universidade Federal de Sergipe, na Faculdade Pio Décimo, sempre
havia uma mesa diretora.
Ingressei
em associações voluntárias como clubes recreativos, grupo de escoteiros,
associações profissionais, sindicatos, entidades culturais, clubes de serviço e
as mesas diretoras continuavam presentes. No mundo do trabalho, nem se fala.
O
tempo me consome o corpo. Livre de velhas dores da alma vividas sob a forma de
angústia e ansiedade, sou agora acossado por outras que desconhecia e volto a
olhar o interior da caverna. As chamas estão se apagando. Não vislumbro mais a
silhueta da mesa diretora, mas ouço vozes roucas a anunciar: “Convido para
tomar assento no Dispositivo o professor Manezinho dos Anzóis”.
Não
mais consigo enxergar o brilho dos ternos bem cortados. Mas, o neologismo Dispositivo
é uma navalha que corta a carne dos conceitos que dão sentido às coisas no acervo
de relações que estabeleço com o mundo. Busco o luxuoso auxílio dos filólogos.
Afinal de contas, por que colecionar tantas palavras?
Um
Dicionário me diz: “Dispositivo – Adjetivo relativo a disposição; o que
prescreve; quer ordena”. Insatisfeito, recorro a outro “pai dos burros”. Ele
esclarece – “Conjunto dos mecanismos e componentes que, estando conectados a um
computador, são capazes de transferir...”
A
senilidade nos possibilita a paciência impaciente, se é possível. Assim estrou
prenhe de impaciente paciência. Desisto. Fiquem com os seus Dispositivos. Quero
de volta a velha e boa Mesa Diretora dos Trabalhos.
*Jornalista, professor aposentado da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e presidente da Academia Sergipana de Educação.
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