Jorge
Carvalho do Nascimento*
A
vida urbana nos faz mofinos. Faz tempo que os gélidos banheiros brancos com
seus revestimentos assépticos no piso, nas paredes e no teto me fizeram
esquecer o bucolismo e o conforto dos banhos de rio, dos banhos de lagoa, dos
banhos de cuia que Epifânio, meu avô paterno, preferia chamar de banho de
susto.
E não foram poucos os banhos nas três modalidades.
Na infância, criado parcialmente por Dona Petrina, a minha avó materna,
inúmeras vezes fui com ela nos períodos de férias escolares passar alguns dias
na propriedade rural da minha bisavó Romualda, no município de Macambira.
Era
uma fazendola na qual ela vivia e lá continuou após a morte do meu bisavô que
eu não cheguei a conhecer porque ele se foi muito jovem, antes de completar 30
anos de nascido. O conceito de infarto era desconhecido da linguagem popular e
singela era a resposta que a minha curiosidade de menino recebia quando
perguntava a causa mortis do biso: morreu do coração.
A
casa na qual morava Dona Romualda tinha paredes de sopapo e cobertura de palhas
de coqueiro. Nunca os vi, mas tenho certeza de que ali havia uma moradia de
barbeiros. Não estou falando dos cabeleireiros que trabalham nos salões
elegantes, mas do inseto sugador de sangue e transmissor de doenças.
As
instalações sanitárias consistiam em um buraco atravessado por um tronco de
coqueiro lavrado atrás de uma moita de bananeiras nos fundos da casa, espaço
destinado ao que jocosamente se convencionou chamar de número dois. Para o
banho, nos fundos da casa, uma pedra grande de ardósia bruta no chão e um tonel
de madeira cheio d’água.
Havia
ainda a opção da lagoa. Uma caminhada que durava cerca de 15 minutos, da casa
até lá. Não era raro chegar lá e encontrar algum bicho bebendo água. Capivaras
eram os mais frequentes. Certa feita tivemos que aguardar uma jiboia, que calmamente
tomava água no local, saciar a sede e desocupar o espaço.
Adolescente,
ingressei no movimento escoteiro, e nos acampamentos me acostumei aos banhos de
cuia, nos rios e nas lagoas. Banhos também no rio Pari, em Indiaroba, onde
costumava ir com o meu pai e a vovó Maria, a mãe dele. O cenário em Indiaroba
era apenas ligeiramente melhor que o de Macambira.
A
vida urbana em Aracaju começou a me amofinar. Na casa da minha avó Petrina,
onde passei a maior parte da infância, boas instalações sanitárias. O mesmo na
casa dos meus pais. E quando virei gente e fui viver nos apartamentos e nas casas
de classe média, terminei por esquecer totalmente dos banhos de cuia, de lagoa
e de rio que marcaram a minha infância.
Algumas
vezes, com o grupo da Expedição Serigy, liderado pelo meu amigo Samarone, quando
fazíamos trilhas pelas matas e por montanhas e rios para fotografar a natureza,
muitas vezes tomei banho de lagoa e, também, nos rios que atravessávamos. Momentos
agradabilíssimos dos quais sinto saudades.
Agora,
morador em uma casa num condomínio de classe média da zona de expansão da
cidade Aracaju, fui obrigado a abandonar os revestimentos brancos dos banheiros
e os chuveiros de boa ducha regulável, durante as celebrações do réveillon que
anunciou o fim do ano de 2023 e a inauguração de 2024.
A
DESO, companhia estatal de saneamento cujo serviço de distribuição de água está
posto à venda pelo governo estadual, culpa a Energisa, companhia distribuidora
de eletricidade que já foi estatal e agora é uma empresa privada, pelo segundo
dia sem água nos bairros Coroa do Meio, Atalaia e toda a chamada Zona de
Expansão de Aracaju.
Para
beber comprei um galão de água mineral. Esperançoso pela volta do abastecimento
de água, passei o último dia do ano sem tomar banho. Usei o velho método “francês”;
uma esponja molhada sobre o corpo, desodorante e uma quantidade generosa de bom
perfume para disfarçar o bodum.
Hoje,
amanheci desesperado por um bom banho. Enchi dois baldes com água que foram
ofertados por um amigo, entrei no banheiro com um vasilhame plástico de boca
larga e me entreguei completamente às boas lembranças do velho e bom banho de
cuia. Recordações que me remeteram à infância.
Impossível
esquecer o tchibum da cuia metálica no balde d’água no banheiro da casa da
minha avó Petrina, onde era obrigatório para mim tomar banho com a porta
aberta. Tenho cá minhas desconfianças das razões que levavam a velha Petrina a
não permitir que eu fechasse a porta do banheiro por dentro no momento do
banho.
Jamais
esqueci a maior das recomendações que a minha avó fazia naquelas oportunidades
em que inspecionava a minha ablução, sempre com a sua voz metálica grave,
enquanto eu me ensaboava: “menino, passe a mão nas camarinhas mais de uma vez e
depois enxague direito para não pegar nenhuma doença”.
Ao
final do banho fiquei feliz e me sentindo confortável, livre do grude da
sudorese. Ficar limpo, vestir roupa limpa, principalmente no primeiro dia de um
novo ano, é tudo de bom. Espero que os meus chuveiros não demorem muito a
receber água e voltem a funcionar em breve e que os banhos de cuia permaneçam
apenas nas doces lembranças que guardo da minha avó Petrina.
Não
sei se agradeço a DESO ou a Energisa pelas recordações que a necessidade de
tomar banho de cuia me trouxe. Não sei ser devo aderir ao coro dos que preferem
a DESO estatal ou privatizada, como é a Energisa. Sei apenas que continuo
indignado pela péssima qualidade do serviço que as duas empresas prestam.
*Jornalista,
professor, Doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e
presidente da Academia Sergipana de Educação.
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