Jorge
Carvalho do Nascimento*
É
normal que o felizardo procure se manter incógnito. Comigo não foi diferente.
Combinei com minha filha que na segunda-feira, primeiro de janeiro, viajaríamos
discretamente a Fortaleza. Na terça-feira, dia 02, iriamos a uma agência da
Caixa Econômica Federal, com a documentação pessoal e o volante, nos apresentaríamos
ao gerente para, de modo discreto, abrir a conta e retirar o nosso polpudo
prêmio.
Natural
que assim fosse. Estávamos experimentando os primeiros problemas dos ricos.
Afinal, nem todo mundo é dono de 580 milhões. Necessário ser discreto. O temor
de um sequestro foi o primeiro pensamento que povoou a mente. Inicialmente
seria de bom tom agir rápido e passar uma temporada razoável fora de Aracaju,
até que outros temas passassem a ocupar a mente das pessoas e a premiação e o
premiado fossem apagados do imaginário coletivo.
Além
da segurança quanto ao possível sequestro, havia um outro problema: não
faltariam amigos e parentes pobres e outros nem tão pobres a peregrinar em
busca de colaborações que iriam de rifas de liquidificadores vendidas em
cartelas do Raid das Moças, empréstimos para quitar as prestações em atraso da
casa própria e enxovais para festas de formatura de doutores do ABC. Sem falar
do vestuários para quadrilhas juninas de festas de bairro e montagem de charolas
para procissões de padroeiros de pequenos povoados.
Alguns
dias depois, com 580 milhas na conta, receberia a orientação de consultores
profissionais e dos amigos endinheirados acerca dos melhores investimentos, a
fim de que eu continuasse a ser agora e sempre um igual. Uma soma
impressionante para mortais comuns, mas de pouca monta para o dono de meio
bilhão de reais serviria para ajudar a vida de alguns poucos parentes do
coração e um ou outro amigo daqueles que mesmo sem precisar a gente presenteia
porque o afeto manda. Gastaria menos de meio por cento do prêmio com tal
veleidade,
Tudo
foi muito bem planejado. Foram quinze dias de intensas conversas com minha
filha. Ela foi a primeira pessoa que me convidou a compartilhar uma aposta na Mega
Sena da Virada. Desembolsei 80 reais. Depois, o meu amigo Washington, que
semanalmente organiza um grupo de apostas, fez novo convite. Foram mais 60
reais. No condomínio onde moro, um outro amigo, Marcus Sabidinho, organizou um
bolão: 50 reais. Por último, os meus amigos do grupo Canalha, que se reúne aos
sábados para tomar vinho, almoçar, mentir e jogar muita conversa fora,
formularam o derradeiro convite – 100 reais. Investimento de 290 reais. Nada
mal trocar esse valor irrisório por 580 milhões.
Tudo
aconteceu durante as duas semanas que antecederam o sorteio do dia 31 de
dezembro. A certeza de ser o ganhador impunha um planejamento acerca do que
fazer para investir corretamente no mercado de capitais, ter uma excelente renda
e não voltar à pobreza original.
Cálculos
bem-feitos e revisados, tudo posto numa cesta diversificada de aplicações,
garantiria um rendimento mensal entre 450 e 500 mil reais. Com 200 mil reais a
cada mês para os gastos correntes do novo estilo de vida, tudo somado à renda
já existente daria muito bem. A cada mês, uma nova aplicação com os cerca de
300 mil reais restantes.
Para
não ficar exposto, no primeiro momento, daria para passar cinco meses embarcado
num cruzeiro de luxo visitando mais de 50 importantes cidades portuárias do
planeta, enquanto dava a volta em torno dos cinco continentes deste mundo.
Entrega total ao ócio improdutivo, com os dias dedicados a boa leitura no convés
da embarcação ou na varanda da cabine confortável.
Nada
de esquecer a escrita dos ensaios de história, atividade que tanto me agrada.
Para isto, três meses numa boa casa alugada em Colônia do Sacramento, a balneária
cidade histórica do Uruguai, com suas ruas estreitas de pedra e suas fortalezas
bucólicas, sempre apreciando o pôr do sol às margens do Rio da Prata.
Livro
publicado, boa oportunidade de retornar a Aracaju, para a noite de autógrafos,
Claro, sem descuidar dos seguranças que discretamente vigiariam o escritor
endinheirado para evitar surpresas desagradáveis. Rever os amigos, abraçar cada
um, derramando as emoções das saudades propiciadas pelo tempo distante.
Talvez,
mais um ano fora de Aracaju pudesse fazer bem. No segundo ano de milionário, um
hotel bucólico em New Orleans, na Louisiana, seria muito bom. Passar as noites
passeando no bairro francês e as madrugadas empanturrando os ouvidos com boas
bandas de jazz e blues.
Duas
semanas passam com rapidez, principalmente quando você tem em uma a celebração
do Natal e na outra a festa do réveillon. Chegou o dia do sorteio da Mega da
Virada. 21, 24, 33, 41, 48, 56. Estes os números do novo milionário. Os meus
números. Nunca duvidei que seriam eles. Este era o resultado do sorteio.
Apenas
para confirmar, liguei para minha filha: “pai, não é desta vez que iremos a Fortaleza
receber o prémio. Fica tudo adiado para 2025”. Essa menina é uma desmancha
prazer. Eu continuava com a certeza de ser o ganhador. O grupo de apostas do
amigo Washington informou: “infelizmente, neste sorteio não tivemos nenhum
acerto. Acertamos uma dezena em um dos jogos”.
Desanimar
e desesperar, jamais. Vou ao grupo de WhatsApp da Canalha. Pela galhofa
reinante, percebi que à exceção de mim os demais são grandes azarões. Quando a
desilusão se aproximava chegou a boa notícia no grupo do meu condomínio. Marcus
Sabidinho fez o “Jornal do Ótimo”: “Ganhamos. Na terça-feira cada um pegue sua
cartela e vá a uma agência da Caixa receber o prêmio”.
Minha
filha havia jogado água fria no projeto Fortaleza. Senti uma mão tocando em meu
ombro, balançando meu corpo e dizendo: “acorda, Jorginho. É terça-feira. A vida
real está à sua espera. Vá logo à Caixa receber o prêmio. Tomei um banho de
cuia (a DESO continua sem fornecer água na região do bairro Mosqueiro), e fui
sentir o prazer do meu primeiro dia de milionário.
Recebi
o prêmio: 202 reais. O bolão de Marcus Sabidinho acertou uma quadra. Dividida
por todos os apostadores, a premiação permitiu que cada um de nós ficasse 202
reais mais rico. Ainda bem O prejuízo quanto ao meu capital investido foi somente
de 88 reais.
*Jornalista,
professor, doutor em Educação, membro da Academia Sergipana de Letras e
presidente da Academia Sergipana de Educação.
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