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A HISTÓRIA NA OBRA DE LÍGIA PINA


 

Jorge Carvalho do Nascimento

 

 

A História foi sempre o campo especializado de trabalho da professora Maria Lígia Madureira Pina e também a marca distintiva da sua atividade intelectual. A professora, literata, poetisa, contista, romancista e teatróloga nascida em 1925 viveu até 2014 estudando, pesquisando e escrevendo sobre História.

A aracajuana veio ao mundo num dia 30 de setembro. Era a terceira filha de Affonso Pina e Alexandrina Madureira Pina e fez uma bem sucedida carreira docente como professora de História Universal do Colégio Estadual Atheneu Sergipense e do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Sergipe, onde ingressou em 1967 e atuou até a sua aposentadoria em 1991.

Como professora do Instituto de Educação Rui Barbosa, a escola normal pública de Sergipe, lecionou História, Geografia e Psicologia da Educação, tendo atuado ainda como professora de História e Geografia do Colégio Nossa Senhora de Lourdes, que até a década de 70 do século XX era o principal espaço de formação das filhas da elite sergipana.

O Colégio Frei Santa Cecília, no bairro Industrial, foi o ponto de partida da sua formação escolar. De lá se transferiu para o Colégio Nossa Senhora de Lourdes e depois para o Instituto de Educação Rui Barbosa – a Escola Normal. Entre 1955 e 1958 cursou Licenciatura em Geografia e História na Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe. Antes mesmo da conclusão do curso já havia iniciado o seu trabalho como professora.  

Militante política no corporativismo sindical, foi presidente do Sindicato dos Professores de Sergipe e Secretária da seção sergipana da Associação dos Geógrafos do Brasil. Em 1989 foi eleita “Educadora do Ano” pela mesma organização sindical. Pelo conjunto da sua obra recebeu homenagem especial do Interact e do Rotary Club.

A poesia foi o primeiro campo intelectual a atraí-la. Ainda na infância, a partir dos 10 anos de idade, escreveu os seus primeiros versos. Publicou um livro de poemas – FLAGRANDO A VIDA, onde manifesta a sua crítica social.

Alguns biógrafos cuidaram de se debruçar sobre o seu trabalho intelectual, a exemplo da memorialista Rosa Faria. Todavia o mais completa estudo acerca da trajetória de Lígia Pina foi a dissertação de Mestrado defendida em 2016 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe, que tem José Genivaldo Mártires como autor. Sob o título de “FLAGRANDO A VIDA”: TRAJETÓRIA DE LÍGIA PINA – PROFESSORA, LITERATA E ACADÊMICA (1925-2014), a dissertação foi orientada por Joaquim Tavares da Conceição.

A partir do estudo de José Genivaldo Mártires é possível afirmar que Lígia Pina se descobriu entusiasta dos estudos de História durante o período em que foi aluna da escola normal, a partir do primeiro ano ginasial, estudando História do Brasil com o professor José Calasans; e, História Universal com o padre José Soares.

Entusiasmo que foi aprofundado depois que Lígia Pina ingressou como aluna da segunda turma do curso de Geografia e História da Faculdade Católica de Filosofia de Sergipe. Foi muito importante aprofundar os estudos de História como aluna dos professores Cleonice Xavier de Oliveira (Didática Especial da História), Gonçalo Rollemberg Leite (História das Civilizações: Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea; e, também Didática do Ensino de História), José Silvério Leite Fontes (História do Brasil), Luiz Rabelo Leite (História da América), Maria Thetis Nunes (História do Brasil).

Lígia Pina se entusiasmou e incorporou a periodização da História nos moldes do pensamento Positivista, tal como aprendera com o professor Gonçalo Rollemberg Leite ao estabelecer como regra geral das civilizações a existência de uma Idade Antiga, uma Idade Média, uma Idade Moderna e uma Idade Contemporânea.

José Genivaldo Mártires demonstra em seu já citado estudo que Gonçalo Rollemberg Leite foi efetivamente o grande modelo de historiador e professor a encantar Lígia Pina: “A crença nas potencialidades do homem racional e o papel exercido pelos heróis e vultos eram os fatores decisivos para a construção da História muito presente na prática pedagógica do professor Gonçalo Rollemberg Leite nas aulas de História da FCFS” (p. 63).

A partir de 1957, convidada pelo professor Severino Uchôa, começou a sua carreira docente lecionando História na Escola Normal Rui Barbosa. Dez anos depois, o seu ingresso no Colégio de Aplicação resultou de convite que lhe foi formulado pelo Frei Edgar Stanikowsky e por Dom Luciano Duarte.

Durante os anos da sua prática docente, Lígia Pina elegeu como modelo o método expositivo e a memorização dos fatos e personagens. A partir do seu ingresso no Colégio de Aplicação ela operou uma Pedagogia que utilizava o teatro como ferramenta de trabalho. Estimulava o estudante a participar na condição de sujeito ativo do processo de aprendizagem.

Em suas aulas era comum, além do teatro, o uso de ferramentas pedagógicas como jograis, júris simulados, recitais de poesias e produção de jornais.  A teatróloga escreveu alguns textos teatrais e levou à cena dois espetáculos, utilizando o teatro como ferramenta didática e o discurso da História como objeto da encenação: “O Viajante do Tempo”, em 1975, e “O Ponto Omega”, em 1979.

Dentre os textos de teatro vale a pena lembrar, ademais dos dois já referenciados, “As Grandes Navegações”, “Patrícios e Plebeus”, “Os Caminhos da Filosofia” e “O Mártir da Liberdade”. Em “O Viajante do Tempo” o texto conduz os estudantes ao Egito e à Mesopotâmia, enfrenta o dilúvio e encontra com o Profeta Isaías na Palestina. Todos testemunham o retorno do povo depois do cativeiro na Babilônia.

Em entrevista que concedeu a José Genivaldo Mártires, a própria Lígia Pina tece o pano de fundo de “O Viajante do Tempo”; “Sequestros, racismos, guerras, crimes hediondos, massacres, luto, dor... Entâo o coro diz: o que fizeram de Confúcio, Buda, Sócrates e Jesus Cristo? Valeu a pena o sacrifício dando as suas vidas? O narrador fala: em nome de Cristo que pregou a paz” (p. 71).

Essa Pedagogia Ativa que entusiasmava Lígia Pina, contudo, não abria mão de uma concepção Positivista da História, imbuída de certezas como a neutralidade do fato histórico. A evidência dada pelo fato seria destarte neutra e ele, o fato histórico, falaria por si.

Essa visão de Lígia Pina não admitia a possibilidade de diferentes olhares nem que fossem extraídos sentidos distintos da verdade dada pela evidência do fato histórico. Seria impossível a construção de narrativas históricas diversas. A visão da história predominante em Lígia Pina era ainda absolutamente eurocêntrica e colocava no palco central heróis e autoridades que falavam em nome do Estado.

À medida que a professora Lígia Pina refinou os seus métodos de ensinar se transformou em uma vigorosa historiadora dedicada a pesquisa e autora de alguns livros. Gostava de fazer referências ao livro didático que escreveu para uso dos alunos do Colégio de Aplicação: TUDO ISTO É O BRASIL.

Outra vez recorro ao estudo do pesquisador José Genivaldo Mártires que ao entrevista-la registrou a percepção da pesquisadora sobre o seu livro didático. “Livro que escrevi sobre a história do Brasil que não tem nada a ver com essas publicações todas porque não é o Brasil isolado, é o Brasil no mundo, e tem o Estado de Sergipe, contextualizado. Foi considerado o melhor projeto da Universidade naquela época, mas não foi publicado porque não era para o terceiro grau, o conselho vetou” (p. 74).

Na mesma entrevista, concedida a José Genivaldo Mártires, a historiadora definiu a sua concepção de mundo: “Eu sou uma humanista por excelência e uma liberal por excelência. Eu acho que a situação do mundo é assim porque o homem esqueceu o próprio homem”.

Para Lígia, a incorporação do humanismo ao seu pensamento de historiadora era devida a influência que recebeu de professores como Dom Luciano Cabral Duarte e Gonçalo Rollemberg Leite. Como sabemos, o humanismo é tributário do pensamento iluminista. Todavia, em Lígia Pina, o humanismo era decorrente do cristianismo, posto que via no retorno do homem a Deus o caminho que considerava viável ao que costumava chamar de a salvação do mundo.

FLAGRANDO A VIDA, A MULHER NA HISTÓRIA, O SATÉLITE ESPIÃO e A RELÍQUIA são os quatro livros marcantes na trajetória da escritora Lígia Pina. O primeiro, FLAGRANDO A VIDA, é de 1983. A MULHER NA HISTÓRIA foi publicado em 1994. SATÉLITE ESPIÃO começou a circula em 1999. A RELÍQUIA foi publicado em 2008.

Aqui, comentarei apenas o livro A MULHER NA HISTÓRIA, por considerar ser este o trabalho por excelência da historiadora Lígia Pina A pesquisa que resultou em tal livro partiu de um pedido feito à professora pelo escritor Antônio Garcia Filho, à época presidente da Academia Sergipana de Letras.

A autora pretendeu incialmente estudar a trajetória da professora e deputada estadual Quintina Diniz, primeira mulher a ter assento em uma das cadeiras da Assembleia Legislativa do Estado de Sergipe. Depois, ela resolveu incorporar o perfil da farmacêutica Cesartina Régis.

Outras mulheres foram incorporadas e Lígia produziu um trabalho com 403 páginas, estruturado em 10 capítulos. Ali, a historiadora assumiu com clareza a sua concepção Positivista da História ao agrupar as mulheres de acordo com a periodização clássica dos historiadores do Positivismo: História Antiga, História Moderna e História Contemporânea. Além disto, articulou a História do Brasil com a historiografia europeia, trazendo para a narrativa da trajetória brasileira as idades Moderna e Contemporânea.

O livro é de importância fundamental para a discussão feminista, posto que Lígia Pina problematizou o tema da discriminação feminina na História, tomando como ponto de partida as questões biológicas e o tema da maternidade. No centro da discussão o impacto da divisão social do trabalho e o alijamento feminino em face do trabalho intelectual.

Debruçada sobre a chamada Antiguidade Clássica e analisando as civilizações orientais, a historiadora recorreu aos textos do Velho Testamento como fonte principal. Mas, não deixou de questionar a cidade de Atenas em face do pouco espaço ocupado pelas mulheres.

Criticou de modo contundente a chamada Idade Média, pela cobrança intensiva da submissão e fidelidade das mulheres, promovendo-se o culto a Maria, a Mãe de Jesus, tomada como modelo de mulher a ser seguido nas sociedades cristãs. Mas, não deixou escapar o importante papel exercido por Joana D’arc e sua luta pela unificação da França durante a Guerra dos 100 anos.

Fez um estudo minucioso a respeito do papel da mulher na Idade Moderna, entre os séculos XV e XVIII, destacando os salões onde se reuniam os intelectuais e os nobres e o aumento gradativo da participação das mulheres eruditas, principalmente em países como França, Inglaterra, Alemanha e Suécia.

Fez um debate aprofundado a respeito da Idade Contemporânea, chamando a atenção para o fato de que o século XIX e a primeira metade do século XX são períodos marcados pelo pioneirismo feminino. Demonstrou a importância das engenheiras, médicas, enfermeiras, poetisas, romancistas, dançarinas e atrizes. Não esqueceu de mostrar a importância do movimento feminista em tal período.

Ao discutir a mulher na História do Brasil, Lígia Pina destacou importantes figuras como Maria Quitéria, Bárbara Heliodora, Sóror Joana Angélica, Ana Neri e Bertha Lutz. A autora recorreu a trajetória de vida de 50 mulheres sergipanas como Amália Soares de Andrade, Áurea Zamor de Melo, Carmelita Pinto Fontes, Celina de Oliveira Lima, Cesartina Regis, Dalva Nou Schneider, Etelvina Amália de Siqueira, Flora do Prado Maia, Gizelda Moraes, Hildete Falcão Baptista, Ítala Silva de Oliveira, Josefina Leite Campos, Lindalva Cardoso Dantas, Maria da Glória Menezes Portugal, Maria das Graças Azevedo Melo, Maria Hermínia Caldas, Maria Rita Soares de Andrade, Maria Thétis Nunes, Núbia Marques, Ofenísia Freire, Rosa Faria, Yvone Mendonça e Zizinha Guimarães.

A análise da obra da autora revela que temos estudado muito pouco acerca da obra da imortal historiadora Maria Lígia Madureira Pina. Ainda temos muito a aprender com a mestra do ensino e aplicada historiadora.

 

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